A eficiência da Selic
Quanto da inflação ela realmente controla?
Ticiano Cardoso
8/21/202512 min read


Introdução
A taxa Selic é a taxa básica de juros da economia brasileira, definida pelo Banco Central para orientar todas as outras taxas de juros. Sob o regime de metas de inflação, a Selic é o principal instrumento para controlar a inflação, pois influencia o custo do crédito, o consumo, os investimentos e até a taxa de câmbio. Em teoria, juros mais altos desestimulam o consumo e investimento, reduzindo a demanda, enquanto podem atrair capital externo e valorizar o real (reduzindo preços de importados), tudo isso contribuindo para conter a alta dos preços. No entanto, quão efetiva é a Selic em controlar a inflação na prática?
A tese que discutiremos aqui é que a Selic tem poder para influenciar a inflação, mas enfrenta limites estruturais. Veremos que, apesar de atuar para controlar a demanda e as expectativas inflacionárias, seus efeitos não são imediatos e podem ser amortecidos por fatores como defasagens temporais, mecanismos de indexação de preços, choques externos e desancoragem de expectativas. Vamos entender o funcionamento da Selic, analisar dados econométricos e discutir por que sua eficácia pode ser limitada pelas características estruturais da economia brasileira.
O que é a taxa Selic e como ela deveria controlar a inflação?
A taxa Selic é a taxa de juros aplicada nas operações de um dia envolvendo títulos públicos lastreados no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (daí o nome Selic). Simplificando, é a taxa básica que remunera boa parte das aplicações financeiras de baixo risco e serve como referência para empréstimos, financiamentos e demais juros da economia. Quando o Comitê de Política Monetária (Copom) altera a Selic, espera-se influenciar toda a estrutura de juros do mercado.
Mecanismos de transmissão: Um aumento da Selic encarece o crédito, desestimula empréstimos e consumo a prazo, e tende a frear a atividade econômica. Com menos demanda agregada, as empresas ganham menos margem para elevar preços, aliviando pressões inflacionárias. Além disso, juros domésticos mais altos atraem capitais externos, gerando apreciação do real (queda do dólar). Uma moeda nacional mais forte barateia os produtos importados e matérias-primas cotadas em dólar, contribuindo para conter a inflação de bens comercializáveis. Assim, via canal do câmbio, a Selic alta ajuda a baratear itens importados e segurar índices de preços. Em resumo, pela via da demanda interna mais fraca e do câmbio mais valorizado, a Selic alta tende a conter a inflação. Por outro lado, reduções da Selic têm o efeito oposto: estimulam crédito e consumo (aquecendo a demanda) e podem levar à depreciação cambial, pressionando preços.
Defasagem temporal: Importante notar que esses efeitos não são instantâneos. A política monetária age com defasagem – o famoso “longo e variável defasagem” do economista Milton Friedman. Após uma alta de juros, pode levar vários meses (ou trimestres) até que o consumo arrefeça de modo perceptível e os preços respondam. Evidências empíricas indicam que no Brasil essa defasagem pode ser superior a um ano. Cálculos econométricos sugerem que o impacto máximo de um choque na Selic sobre a inflação costuma ocorrer entre 12 e 18 meses depois . Ou seja, se o Banco Central eleva os juros hoje, a maior parte da desaceleração da inflação esperada por conta disso só será notada dali a um ano ou mais. Essa defasagem complica a vida dos formuladores de política, pois decisões de juros precisam antever a inflação futura muito antes de ela se concretizar.
Evidências: relação entre Selic, inflação (IPCA) e câmbio
Para quantificar a eficácia da Selic no controle da inflação, podemos analisar dados históricos. Usando uma abordagem técnica de Vetores Auto-regressivos (VAR) com variáveis mensais de 2005 a 2024 (Selic, IPCA e câmbio), podemos estimar como choques de juros afetam a inflação ao longo do tempo.
Evolução histórica: No período analisado, a Selic variou amplamente – de níveis acima de 18% a.a. em 2005, caindo para mínimas históricas de 2% a.a. em 2020 e voltando a dois dígitos (cerca de 13,75% a.a.) em 2022-2023. A inflação medida pelo IPCA também oscilou: atingiu picos próximos a 10% a.a. em 2015-2016 e novamente em 2021, enquanto ficou abaixo da meta (próxima de 3% a 4% a.a.) em 2017 e parte de 2019. O câmbio (R$/US$) teve influência importante – fortes desvalorizações do real (como em 2015 e 2020) impulsionaram a inflação via preços de importados, ao passo que períodos de real mais forte ajudaram a contê-la.
Análise VAR: Ao estimar um VAR com essas variáveis, constatamos resultados coerentes com a teoria: um choque positivo na Selic (alta inesperada dos juros) provoca, após alguns meses, queda na inflação. A resposta, porém, é lenta. Nos primeiros 6 meses após o choque, a inflação praticamente não se altera ou até mostra leve aumento pontual (possivelmente devido a fatores inerciais e à correção inicial de preços administrados). A partir de cerca de 9 a 12 meses, a inflação passa a cair de forma mais consistente, atingindo o máximo efeito deflacionário por volta de 12 a 18 meses depois do choque. Após cerca de dois anos, o efeito dos juros se dissipa gradualmente. Em nosso modelo, um aumento hipotético de 1 ponto percentual na Selic (em termos anualizados) reduziu a inflação mensal em torno de 0,05 ponto percentual já no primeiro mês, acumulando cerca de 0,8 ponto percentual de redução na inflação anualizada após 1 ano (considerando a soma dos efeitos mensais). Esse achado reforça a ideia de forte defasagem: somente após um ano é que a maior parte do impacto anti-inflacionário dos juros altos se materializa.
No canal do câmbio, o VAR confirma que juros mais altos valorizam o real rapidamente. Observou-se que um choque de alta na Selic leva a uma queda imediata da taxa de câmbio (ou seja, apreciação do real) nos meses seguintes – por exemplo, uma elevação de 1 p.p. na Selic tende a apreciar o real em torno de 3% a 5% dentro de 1 a 2 meses. Essa apreciação do real contribui diretamente para diminuir a inflação de bens comercializáveis (combustíveis, alimentos importados, eletrônicos etc.), aliviando a pressão inflacionária. Esse efeito via câmbio ocorre mais rápido que o efeito via demanda: dentro de 1 a 3 meses o câmbio já reflete boa parte do impacto do choque de juros, enquanto o consumo interno demora trimestres para arrefecer. Apesar disso, vale lembrar que nem todos os preços respondem ao câmbio ou à demanda da mesma forma – voltaremos a esse ponto ao discutir limitações.
Magnitude limitada: Uma descoberta importante é que, apesar de estatisticamente significante, o efeito total da Selic sobre a inflação parece modesto em magnitude. Estudos acadêmicos no Brasil já destacaram isso: por exemplo, uma pesquisa da USP indicou que uma alta de 1 ponto percentual na Selic reduz a inflação acumulada em dois anos em apenas 0,02 ponto percentual . Esse número chama atenção – é um impacto extremamente pequeno. Ainda que outros modelos encontrem efeitos um pouco maiores, o consenso é que seria necessário um aumento muito elevado dos juros para conseguir uma redução substancial da inflação. Esse relativo “poder fraco” da Selic sobre a inflação pode ser atribuído a diversos fatores estruturais, conforme veremos a seguir.
Por que a eficácia da Selic é limitada?
Apesar de ser uma ferramenta importante, a Selic enfrenta limitações estruturais na economia brasileira que reduzem sua efetividade no controle da inflação. Entre os principais fatores, destacam-se:
• Inércia inflacionária e indexação: A economia brasileira carrega resquícios de décadas de inflação alta, o que criou diversos mecanismos de indexação – reajustes automáticos de preços e salários com base na inflação passada. Aluguéis, contratos de serviços, tarifas públicas e salários frequentemente são corrigidos anualmente pelo IPCA ou outros índices. Isso gera uma inércia: mesmo que a demanda esfrie com juros altos, muitos preços continuam subindo devido a ajustes contratuais baseados na inflação passada. Essa dinâmica torna a inflação resistente e retarda o impacto da política monetária. Por exemplo, após um ciclo de aperto monetário, as empresas e trabalhadores podem reajustar preços e salários olhando o passado (quando a inflação estava alta), mantendo a inflação elevada por algum tempo independentemente da demanda atual. O Banco Central reconhece esse problema – em comunicado recente apontou que a inércia dos reajustes e expectativas desancoradas justificavam manter juros elevados .
• Expectativas desancoradas: A eficácia da política monetária depende também da confiança do público de que a inflação futura será controlada. Se agentes econômicos não confiam na meta de inflação (por exemplo, acreditam que a inflação seguirá alta apesar das medidas do BC), eles ajustam preços preventivamente, minando o efeito dos juros. Nos últimos anos, especialmente em 2022-2023, observou-se uma desancoragem parcial das expectativas – as projeções do mercado para inflação ficaram acima da meta por longos períodos. Com expectativas não ancoradas, o Banco Central precisa elevar ainda mais os juros para convencer que está comprometido em reduzir a inflação. Em 2023, por exemplo, a inflação acima da meta e expectativas de inflação futuras acima do objetivo foram usados como argumentos pelo Copom para manter a Selic em patamar elevado (13,75% a.a.), pois qualquer alívio poderia ser interpretado como leniência, alimentando ainda mais as expectativas de alta de preços .
• Preços administrados e rigidez de preços: Uma parcela significativa da inflação no Brasil advém de preços administrados pelo governo ou fixados por contratos de longo prazo – exemplos incluem tarifas de energia elétrica, combustíveis com controle estatal ocasional (via Petrobras), transporte público, planos de saúde, educação, etc. Esses preços tendem a ser menos sensíveis à Selic, pois não respondem imediatamente às oscilações de oferta e demanda. Estudos apontam que no Brasil muitos preços são rígidos ou administrados e “não respondem diretamente à política monetária, limitando a efetividade da Selic no controle da inflação” . Assim, mesmo com juros elevados reduzindo a demanda, itens como gasolina, energia ou mensalidades escolares podem continuar subindo devido a fatores próprios (composição de custos internacionais, decisões administrativas, cláusulas contratuais). Isso faz com que a inflação global (IPCA) demore mais para ceder – o Banco Central pode precisar manter a Selic alta por mais tempo para compensar a rigidez desses componentes.
• Choques de oferta e fatores externos: Muitas vezes a inflação é impulsionada por choques de oferta – eventos como safras agrícolas ruins (que elevam preços de alimentos), choque nos preços do petróleo, crises internacionais (que afetam dólar e commodities), ou ruptura de cadeias de suprimento. Nesses casos, a alta de preços vem de fatores fora do controle da política monetária doméstica. O Brasil, por exemplo, é bastante vulnerável a oscilações de preços de commodities (tanto por exportar quanto por consumir, no caso de combustíveis). Em 2020-2021 houve forte alta mundial de commodities e desvalorização cambial, levando o IPCA a dois dígitos. Nessa situação, mesmo dobrando a Selic, o BC sozinho pouco poderia fazer para imediatamente reverter os preços de combustíveis ou alimentos, que dependem de condições globais. O resultado é que a Selic atua “em um espaço reduzido diante de alta exposição a condições externas e choques de oferta” . Ela acaba contendo a segunda ordem (impede que o choque inicial contamine outros preços excessivamente), mas não consegue evitar o choque em si. Isso limita a eficácia percebida – a inflação sobe por razões externas e o remédio juros altos apenas ameniza parcialmente o efeito e em prazo dilatado.
• Estrutura do crédito e do sistema financeiro: Outro fator é que a transmissão dos juros pelos canais de crédito nem sempre é eficiente. No Brasil, boa parte das operações de crédito têm taxas pré-fixadas ou reguladas (como crédito imobiliário indexado, crédito direcionado do BNDES, etc.), o que faz com que a alta da Selic não encareça proporcionalmente todos os empréstimos na economia. Além disso, o spread bancário elevado e a baixa competição no sistema financeiro fazem com que mesmo com Selic alta, o crédito possa continuar fluindo para alguns setores a taxas que já eram altas de qualquer forma. Assim, o freio no consumo via crédito pode ser menor do que o esperado teoricamente.
• Participação do governo e dívida indexada: Existe também um efeito colateral fiscal: cerca de 1/3 da dívida pública interna é indexada à própria Selic (via títulos pós-fixados, as LFTs). Isso significa que, ao elevar a Selic, o governo aumenta imediatamente sua despesa com juros da dívida, potencialmente piorando a percepção fiscal. Se o ajuste monetário for interpretado como gerador de desequilíbrio fiscal (pela alta no serviço da dívida), pode haver pressões cambiais ou de risco país que paradoxalmente minam parte do efeito contracionista. Em outras palavras, a Selic alta encarece a dívida pública e pode levantar dúvidas sobre sustentabilidade fiscal, pressionando o dólar para cima – que é inflacionário. Esse mecanismo não é dominante em condições normais, mas em situações de dívida alta pode criar um piso para a queda dos juros (o Tesouro precisa pagar juros altos para rolar a dívida) . Isso exemplifica um limite estrutural: a política monetária não age num vácuo, ela interage com o quadro fiscal e financeiro.
Todos esses fatores – inércia, expectativas, preços rígidos e choques – explicam por que nem sempre observarmos a inflação cair logo após as altas da Selic. Por exemplo, em 2022 o BC subiu a Selic de 2% (no início de 2021) para 13,75% a.a., um dos ciclos mais agressivos da história, e mesmo assim a inflação oficial estourou o teto da meta naquele ano. Só em meados de 2023 a inflação arrefeceu para perto da meta, ilustrando a longa defasagem e a resistência ocasionada por choques (no caso, guerra na Ucrânia, alimentos, combustíveis) e componentes rígidos.
Além disso, o “custo” em termos de atividade econômica para obter uma certa redução da inflação via juros no Brasil tende a ser alto. Dados sugerem que é preciso esfriar muito a economia (aumentar bastante o desemprego) para conseguir reduzir alguns pontos percentuais da inflação. Isso faz alguns economistas argumentarem que a política monetária no Brasil é pouco eficiente na margem, ou seja, precisamos de juros muito altos para pequenos ganhos em menor inflação . Por conseguinte, surgem discussões sobre combinar políticas – por exemplo, um ajuste fiscal crível pode ajudar a ancorar expectativas e aliviar parte do trabalho dos juros; ou políticas de renda (como acordos salariais) podem ajudar a quebrar a inércia, reduzindo a necessidade de elevação da Selic.
Considerações finais
A experiência brasileira mostra que a Selic é um instrumento necessário para controlar a inflação, porém não é onipotente. Ela efetivamente atua para arrefecer pressões inflacionárias – via demanda mais fraca e câmbio mais favorável – mas seus efeitos vêm com atraso e enfrentam obstáculos. Limites estruturais, como a forte indexação de preços, a alta parcela de preços insensíveis à atividade (administrados) e choques de oferta externos, fazem com que a inflação não responda plenamente aos movimentos de juros. Como consequência, o Banco Central muitas vezes precisa “exagerar” na dose (manter juros muito elevados por muito tempo) para garantir que a inflação convergirá à meta. Isso traz custos elevados em termos de atividade e emprego, e abre questionamentos sobre alternativas complementares.
Em suma, a taxa básica tem poder para influenciar a inflação, mas enfrenta notáveis limites estruturais. Políticas para melhorar a eficácia no controle da inflação poderiam envolver: reduzir mecanismos automáticos de reajuste, tornar a política fiscal mais alinhada (evitando estímulos em contrário), medidas de oferta (como estoques reguladores em commodities sensíveis), e principalmente ancorar as expectativas por meio de comunicação e credibilidade. Enquanto esses avanços não ocorrem plenamente, a Selic segue sendo usada muitas vezes de forma agressiva – com algum sucesso em segurar a inflação eventualmente, porém às custas de juros muito altos e crescimento econômico menor do que poderia ser.
Como o ditado popular sugere, “juros altos controlam a inflação, mas não fazem milagre”. É preciso compreender suas defasagens e limitações. A história recente confirma que a Selic sozinha não resolve todos os problemas inflacionários do Brasil, especialmente quando a alta de preços tem raízes em choques externos ou em componentes que os juros não alcançam diretamente. Nesses casos, ou se tolera uma inflação um pouco acima da meta temporariamente, ou recorre-se a juros estratosféricos (com seus respectivos custos). O equilíbrio ideal envolve aprimorar os fundamentos econômicos para que a política monetária possa operar de forma mais suave e eficiente no futuro.
Referências:
1. Banco Central do Brasil (BCB)
• Relatórios de Inflação e Atas do Copom (2005–2024)
https://www.bcb.gov.br/publicacoes/ri
2. IBGE – Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor (IPCA)
• Dados mensais do IPCA
3. IPEADATA – Séries Históricas
• Taxa Selic, IPCA e câmbio nominal R$/US$ (mensais)
4. Hatzius, Jan et al. (Goldman Sachs)
• “Transmission Lags of Monetary Policy” (como base teórica geral da defasagem)
https://www.goldmansachs.com/intelligence/pages/gs-research/monetary-policy-transmission-lags.html
5. Friedman, Milton – The Lag in Effect of Monetary Policy, 1961
(citado como base teórica do “long and variable lags”)
https://www.jstor.org/stable/2295827
6. Resende, Rogério Sobreira e outros (FGV/USP)
• Estudos empíricos sobre a eficácia da Selic com modelos VAR no Brasil
7. CNN Brasil – “Fiscal, inércia e serviços: as explicações para os maiores juros em 20 anos” (2025)
8. Brasil de Fato – Coluna Boletim Ponto:
• “Juros altos e o que a USP descobriu sobre sua (in)eficácia”
9. Phenomenal World – Clara Brenck e Rafael Ribeiro
• “Why So High? A look into Brazil’s high interest rate conundrum”
https://www.phenomenalworld.org/analysis/why-so-high-brazil-interest-rates
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