Entendendo a relação entre emprego e inflação
Curva de Phillips
Ticiano Cardoso
8/21/202510 min read


Quando a economia está forte e quase todos estão empregados, isso parece uma ótima notícia. Afinal, quem não gostaria de ver pleno emprego – ou seja, praticamente todo mundo que quer trabalhar conseguindo um emprego? Mas será que esse sucesso pode virar um problema? Por incrível que pareça, uma economia aquecida, com desemprego muito baixo, pode enfrentar inflação mais alta. Em outras palavras, às vezes quando o sucesso gera inflação, surge um dilema para a política econômica: emprego para todos ou preços estáveis? Vamos explorar esses temas de forma clara e acessível, começando do básico e avançando aos pontos mais complexos, sem economês e com exemplos do dia a dia.
O que é a Curva de Phillips?
A Curva de Phillips é um conceito da economia que descreve uma relação inversa entre desemprego e inflação, pelo menos no curto prazo. Em termos simples, isso significa que quando o desemprego cai, a inflação tende a subir; e quando o desemprego sobe, a inflação tende a cair. Essa ideia surgiu no final da década de 1950, quando o economista neozelandês A. W. Phillips analisou dados do Reino Unido de quase um século e notou esse padrão . Mas o que realmente está por trás dessa relação?
Podemos entender a lógica pensando na lei da oferta e demanda. Imagine que mais pessoas conseguem emprego e passam a receber salários – ótimo, não? Com mais renda, as famílias consomem mais, compram mais produtos e serviços. Essa demanda agregada (ou seja, a demanda total na economia) cresce e, se a oferta de bens e serviços não acompanhar, os preços sobem. Em contrapartida, se muita gente está desempregada, o consumo diminui, a demanda fica menor que a oferta disponível, e os vendedores têm dificuldade em aumentar preços – às vezes precisam até fazer promoção para atrair clientes. Em resumo: quando há expansão do emprego, a demanda aumenta mais do que a oferta e, consequentemente, os preços sobem; já quando as pessoas perdem o emprego e consomem menos, a oferta fica maior que a demanda, e os preços tendem a cair .
Vamos definir os termos básicos para ninguém se perder: inflação nada mais é do que o aumento generalizado dos preços de produtos e serviços . É quando seu dinheiro passa a valer menos – por exemplo, você vai ao supermercado e volta com menos itens do que antes, usando a mesma quantia em dinheiro. Já pleno emprego é como chamamos a situação em que o desemprego está em nível baixíssimo, próximo do mínimo que a economia consegue atingir de forma sustentável (não quer dizer zero desemprego, pois sempre há alguma rotatividade e pessoas mudando de trabalho). E demanda agregada é simplesmente a soma de todo o consumo e investimento na economia – em outras palavras, quanto todos, juntos, estão dispostos a gastar em bens e serviços. Com esses conceitos em mente, podemos entender por que mais trabalho pode significar preços mais altos.
Pleno emprego pode virar problema?
Emprego alto geralmente é motivo de comemoração. Porém, economistas alertam que, se a economia atingir ou se aproximar do pleno emprego, podem surgir pressões inflacionárias. Quando praticamente todas as vagas estão preenchidas, as empresas enfrentam dificuldade para contratar novos funcionários. Nesse cenário, para atrair mão de obra extra, elas acabam disputando trabalhadores a salários maiores. Ou seja, os salários sobem, aumentando a renda das famílias – o que é ótimo para os trabalhadores – mas também elevando os custos das empresas e estimulando ainda mais o consumo, um combo que empurra os preços para cima. Foi justamente essa relação que o Banco Central do Brasil destacou recentemente: “quando o desemprego chega a níveis historicamente baixos, você acaba tendo algumas pressões inflacionárias” . Em palavras simples, quanto mais pessoas trabalhando e consumindo, maior a chance de os preços aumentarem.
Não por acaso, autoridades monetárias ficam atentas a sinais de superaquecimento no mercado de trabalho. O ex-presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, comentou em abril de 2024 que, embora o pleno emprego seja desejável, existia preocupação de que a elevação dos salários gerasse inflação. Esse comentário ilustra o ponto central: um mercado de trabalho muito aquecido pode levar a uma inflação indesejada, pois salários subindo depressa significam custos maiores para produzir bens e serviços e mais poder de compra na economia – ingredientes que alimentam a alta de preços. Assim, paradoxalmente, uma conquista econômica (desemprego baixo, salários em alta) pode se transformar em um desafio, exigindo cuidado dos formuladores de política econômica.
Quando o sucesso gera inflação
Esse aparente paradoxo – a ideia de que “quanto melhor vai a economia, maior o risco de inflação” – é o cerne da Curva de Phillips. Podemos dizer que é quando o sucesso gera inflação: uma economia crescendo rápido, com muita geração de empregos e renda (sucesso!), começa a enfrentar aumento generalizado de preços. Por quê? Retomando nossa explicação: com mais gente empregada e confiante, há mais consumo de bens e serviços. Lojas e fábricas vendem mais, os estoques diminuem, e muitos negócios operam perto do limite de sua capacidade. Logo, os preços sobem, seja porque os consumidores topam pagar mais para garantir aquele produto, seja porque as empresas repassam seus custos maiores (como salários) para os preços finais.
Além disso, quando todo mundo está comprando bastante, pode ocorrer falta de alguns produtos ou insumos – pense em setores trabalhando no limite. Nesses casos, o aquecimento da demanda diante de uma oferta restrita também puxa os preços para cima. Mais trabalho significando preços mais altos nada mais é do que essa situação: desemprego baixo leva a maior poder de compra e custos salariais, e ambos alimentam a inflação . Como desenvolvi em minha dissertação sobre a Curva de Phillips, quando o desemprego está muito baixo, a renda melhora, os salários sobem (pois já não há tanta gente disponível para contratar) e o consumo aumenta; com a oferta de bens limitada, isso gera aumento de preços. Em outras palavras, mais gente trabalhando implica mais dinheiro circulando e, se a economia não consegue produzir mais na mesma proporção, o resultado são preços mais altos.
Origem e evolução da teoria (anos 1950 aos dias atuais)
A Curva de Phillips nasceu de um estudo de 1958, quando A. W. Phillips observou décadas de dados e identificou esse trade-off (conflito) entre inflação e desemprego . Nos anos 1960, muitos governos e economistas abraçaram a ideia: parecia ser possível “escolher” uma combinação de desemprego e inflação. Por exemplo, poderia-se tolerar um pouco mais de inflação para atingir desemprego mais baixo, ou aceitar desemprego maior para derrubar a inflação. Esse entendimento funcionou por um tempo, mas então veio a grande virada nos anos 1970.
A década de 1970 trouxe um fenômeno inesperado chamado estagflação – uma mistura perversa de estagnação econômica com inflação alta. Vários países enfrentaram inflação em alta mesmo com alto desemprego, algo que contradizia a Curva de Phillips simples. De fato, mesmo com a economia fraca e muita gente desempregada, os preços continuavam subindo, algo impensável pelo modelo original . O caso dos choques do petróleo em 1973 é emblemático: o preço do petróleo disparou, encarecendo energia e transporte, o que elevou os preços de praticamente tudo (inflação) ao mesmo tempo em que as economias esfriaram e o desemprego subiu. Resultado: a curva de Phillips “tradicional” desandou, mostrando que ela não era estável ou fixa e podia se deslocar devido a choques de oferta e outros fatores .
Essa crise levou a uma revisão da teoria. Economistas como Milton Friedman e Edmund Phelps argumentaram que o trade-off entre inflação e desemprego só valia no curto prazo. No longo prazo, se um país tentar manter desemprego abaixo de certo nível (às vezes chamado de taxa natural de desemprego ou desemprego de equilíbrio), a inflação vai apenas acelerar continuamente, sem ganhos permanentes de emprego. Em outras palavras, existe “uma certa taxa de desemprego na qual a inflação não acelera” . Tentar forçar o desemprego para abaixo desse patamar de forma duradoura é comprar briga com a inflação – mais cedo ou mais tarde os preços disparam e você acaba voltando à estaca zero, ou pior, com inflação elevada e desemprego maior depois de um tempo. Foi o que se viu nos EUA no fim dos anos 1970 e início dos 80: a inflação só cedeu quando o banco central (Federal Reserve) elevou os juros fortemente, provocando recessão e aumento do desemprego, até quebrar aquele círculo vicioso .
Desde então, a visão sobre a Curva de Phillips ficou mais cautelosa e “incrementada” pelas expectativas. Hoje se sabe que as expectativas de inflação do público mudam a dinâmica. Se trabalhadores, empresários e consumidores esperam inflação alta, eles passam a se comportar de forma a antecipar isso – pedindo reajustes salariais maiores, aumentando preços preventivamente – o que acaba causando inflação alta. Por outro lado, se todos acreditam que a inflação ficará baixa e estável, esse comportamento exagerado não acontece e os preços tendem a se manter mais comportados. Assim, manter as expectativas ancoradas (bem comportadas) se tornou missão crucial dos bancos centrais modernos . Além disso, fatores globais passaram a influenciar a relação entre emprego e preços: por exemplo, na era da globalização, quando a demanda interna de um país estava forte, muitas vezes ele pôde importar produtos de outros lugares, evitando falta de oferta e aliviando pressões inflacionárias . Isso fez com que, em várias economias, a Curva de Phillips ficasse mais “achatada”, ou seja, desemprego baixo gerava menos inflação do que antigamente, devido à combinação de expectativas de inflação bem ancoradas e da possibilidade de recorrer ao mercado global para suprir excesso de demanda.
É importante notar que “achatada” não significa “inexistente”. Mesmo atualmente, se um país esticar demais a corda – isto é, se a economia operar muito acima de sua capacidade, com desemprego muito baixo – a inflação acaba aparecendo. A diferença é que, com políticas adequadas e comunicação clara, os bancos centrais conseguiram moderar esse dilema em muitos momentos, mantendo inflação controlada mesmo com desemprego relativamente baixo. Um exemplo foi o período anterior à pandemia de Covid-19, em que países como os Estados Unidos viram desemprego cair a mínimos históricos sem grande alta de inflação, graças em parte a esses fatores estruturais e de credibilidade.
O dilema: emprego para todos ou preços estáveis?
Diante de tudo isso, fica claro o dilema de política econômica que a Curva de Phillips representa. É possível ter desemprego baixíssimo sem ter inflação? Ou, colocando de outra forma, o que é mais prioritário: garantir emprego para todos ou manter os preços estáveis? Esse dilema não tem resposta fácil, e os formuladores de política (como o Banco Central) tentam equilibrar os dois objetivos. Quando a inflação ameaça sair do controle, a resposta clássica da política monetária é subir a taxa de juros. Juros mais altos encarecem o crédito e desestimulam consumidores e empresas a gastar e investir, esfriando um pouco a economia. Com menos demanda, as empresas perdem poder de elevar preços e a inflação tende a ceder. Só que esse remédio traz um efeito colateral: a atividade econômica desacelera e o desemprego pode subir . Ou seja, para segurar os preços, sacrifica-se um pouco o ritmo da economia e do mercado de trabalho. É uma corda bamba: se pesar demais a mão nos juros, pode frear excessivamente o crescimento e gerar desemprego alto; se pesar de menos, a inflação pode disparar.
Os bancos centrais modernos buscam justamente conciliar máximo emprego com estabilidade de preços, evitando ter que escolher um ou outro. No Brasil, por exemplo, o Banco Central tem a meta de inflação a cumprir – um objetivo de manter a inflação por volta de determinado percentual ao ano – e utiliza os juros para atingir essa meta. Mas ao decidir sobre os juros, também olha para a atividade econômica e o emprego, tentando minimizar danos colaterais. Nos Estados Unidos, fala-se em duplo mandato: promover o máximo emprego sustentável e preços estáveis. A palavra-chave aí é “sustentável” – emprego alto que dure, sem inflação explosiva. Em última instância, o melhor dos mundos é ter uma economia forte, com desemprego baixo e inflação baixa. Na prática, alcançar isso exige calibrar finamente as políticas públicas e, muitas vezes, fazer concessões: por exemplo, tolerar uma inflação um pouco acima do ideal temporariamente para evitar desemprego em massa, ou vice-versa.
A boa notícia é que, entendendo a Curva de Phillips e suas nuances, conseguimos antecipar certos movimentos da economia e da política de juros. Se vemos o desemprego cair demais e a inflação começar a subir, já sabemos que provavelmente o Banco Central vai intervir para esfriar a situação – afinal, “pressões inflacionárias aumentam à medida que o desemprego diminui”, expondo o tal dilema entre inflação e desemprego . Por outro lado, se o desemprego está alto e a inflação baixa ou em queda, há espaço para estímulos à economia sem risco imediato de inflação – nesse caso, políticas para gerar empregos são bem-vindas.
Em suma, a Curva de Phillips nos ensinou que não dá para zerar o desemprego sem pensar nas consequências nos preços. Pleno emprego é um objetivo nobre e importante, mas os responsáveis pela economia precisam ficar de olho para que essa vitória não seja acompanhada de uma disparada da inflação. Com equilíbrio e políticas bem informadas (inclusive aprendendo com a história econômica e com teorias como a de Phillips), é possível chegar perto do “melhor dos dois mundos” – muita gente empregada e preços sob controle.
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Referências
• Agência Brasil. Entenda a relação entre pleno emprego, inflação e juros do BC. 12 de maio de 2024.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-05/entenda-relacao-entre-pleno-emprego-inflacao-e-juros-do-bc
• UOL Economia. Por que, mesmo com a economia indo bem, o BC segue aumentando o juro. 18 de setembro de 2024.
Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/09/18/pleno-emprego-inflacao-juros.htm
• XP Investimentos. Curva de Phillips: entenda a teoria e sua relação com a inflação. Atualizado em 06 de junho de 2023.
Disponível em: https://conteudos.xpi.com.br/economia/curva-de-phillips/
• XP Investimentos. Curva de Phillips e estagflação: como desemprego e inflação podem subir juntos. 19 de junho de 2023.
Disponível em: https://conteudos.xpi.com.br/economia/curva-de-phillips-e-estagflacao/
• Blog do IBRE/FGV – José Márcio Camargo. Inflação e desemprego – a Curva de Phillips. 12 de março de 2018.
Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/inflacao-e-desemprego-curva-de-phillips
• Por Quê? – Blog de Economia. Para onde vai a curva de Phillips? 2022.
Disponível em: https://porque.com.br/curva-de-phillips/
• Banco Central do Brasil (BCB). Relatórios e comunicados oficiais sobre política monetária e inflação.
Disponível em: https://www.bcb.gov.br
• Fundo Monetário Internacional (FMI). Relatórios e publicações sobre inflação, emprego e expectativas.
Disponível em: https://www.imf.org
• Cardoso, Ticiano Augusto Mendonça. Uma revisão da literatura sobre a Curva de Phillips e sua aplicabilidade para o Brasil. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Instituto de Ciências Econômicas e Gerenciais (ICEG), Belo Horizonte, 2017.
Disponível em: https://www.pucminas.br/unidades/iceg
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