ESG, compliance e o plástico que nunca some

Reciclagem ilusória, compliance no papel e governança cosmética: solução ou teatro corporativo?

Ticiano Cardoso

8/21/20258 min read

Empresas alardeiam siglas e relatórios brilhantes de ESG (Ambiental, Social e Governança) e programas de compliance, mas muitas vezes isso tudo não passa de fachada. Em vez de alavancas de mudança estrutural, viraram estratégia de marketing e blindagem de imagem – um firewall reputacional que protege a companhia de críticas sem alterar práticas nocivas. O resultado? Como apontou um especialista, “a maior parte da discussão é apenas marketing” . Há muito discurso sobre sustentabilidade, mas pouca ação transformadora. Governança e compliance viram listas de checagem burocráticas para minimizar riscos legais e melhorar a aparência diante do mercado, enquanto os modelos de negócio seguem intocados. É a sustentabilidade como maquiagem verde: um verniz estético para passar impressão de responsabilidade, porém sem compromisso real em mudar estruturas ou sacrificar lucros de curto prazo.

Reciclagem: A Grande Distração Sustentável

Entre as narrativas preferidas dessa “sustentabilidade de fachada” está a reciclagem. Décadas de campanhas ensinaram o público a separar lixo e acreditar que plástico vai virar produto novo indefinidamente. Grandes corporações inundam o mundo com plásticos descartáveis e depois jogam no colo do consumidor a missão de reciclar – convenientemente desviando o foco de quem produz o problema. Mas a realidade esmagadora é que mais de 90% de todo o plástico produzido nunca foi reciclado . Segundo a OCDE, apenas cerca de 6% do plástico é efetivamente reciclado globalmente . O restante acaba em aterros, incinerado ou poluindo oceanos e solos. A promessa da reciclagem em massa falhou estrondosamente, apesar do símbolo de “setas circulares” estampado em quase tudo nos fazer acreditar no contrário.

Para piorar, há evidências de que essa narrativa foi orquestrada pelas próprias indústrias do plástico e petróleo. Em 2023, o estado da Califórnia processou a ExxonMobil alegando que a empresa liderou uma campanha de décadas para convencer o público de que a reciclagem resolveria a crise do plástico – mesmo sabendo que isso era impossível . Ou seja, a reciclagem serviu de distração conveniente, comprando tempo e boa vontade enquanto a produção de descartáveis continuou crescendo sem freios.

Por que a reciclagem de plástico frequentemente não funciona? Os motivos não são “falta de vontade individual”, mas sim barreiras técnicas e econômicas gigantescas. Entre elas:

Contaminação e coleta inadequada: Muitos materiais colocados para reciclar estão sujos ou no lugar errado, tornando lotes inteiros inutilizáveis. Uma única embalagem engordurada ou item não-reciclável pode contaminar uma carga . Nos EUA, empresas reportam que 1 em cada 4 itens nas lixeiras de reciclagem nem sequer é reciclável de fato – seja por erro de descarte ou impurezas. Essa contaminação aumenta custos e muitas vezes leva ao descarte, não à reciclagem.

Mistura de materiais e complexidade: Diferentemente de vidro ou metal, o plástico não é um material único – é uma família de milhares de polímeros e aditivos. Cada tipo de plástico exige processamento separado, pois não podem ser reciclados juntos . Produtos feitos com camadas múltiplas (por exemplo, embalagens metalizadas/plásticas) ou com componentes diferentes colados são virtualmente impossíveis de reciclar com os métodos atuais. Além disso, quase 17 mil químicos diferentes são usados na fabricação de plásticos , criando combinações complexas que dificultam a reutilização. Essa sopa química torna a reciclagem um processo caro, demorado e logisticamente complicado, que raramente compensa.

Downcycling (perda de qualidade): Ao contrário de metais ou vidro, que podem voltar ao mesmo uso várias vezes, o plástico normalmente sofre degradação a cada reciclagem. Um produto de plástico reciclado tende a ser de qualidade ou pureza inferior ao original – é o chamado downcycling. Plásticos “reciclados” muitas vezes viram materiais de menor valor (enchimentos, fibras têxteis de qualidade inferior) e poucas vezes podem substituir o plástico virgem em aplicações exigentes. Inclusive, especialistas apontam que plástico usado é estruturalmente mais fraco, exigindo a adição de plástico novo para reforçar o reciclado . Em suma, você não pode reciclar a mesma garrafa PET em outra garrafa idêntica indefinidamente – na prática ela será convertida em itens de menor desempenho até acabar em um lixão.

Viabilidade econômica e falta de demanda: Reciclar plástico custa caro e rende pouco frente às alternativas. Produzir plástico virgem novo é mais barato na maioria dos casos, pois o preço do petróleo (matéria-prima) tem se mantido baixo e o processo de fabricação em larga escala é muito eficiente . Já o mercado para material reciclado é volátil e limitado . Poucas indústrias compram plástico reciclado em larga escala, seja por questões de qualidade (o reciclado pode não atender especificações) ou por simples economia (se o virgem custa menos, por que usar o reciclado?). Essa falta de demanda viável significa que mesmo o plástico coletado e pronto para reuso frequentemente não encontra comprador – e acaba descartado. Além disso, investir em ampliação de infraestrutura de reciclagem não atrai investidores justamente por essa equação econômica desfavorável. Os números não fecham: muitas prefeituras gastam mais para coletar e separar recicláveis do que economizam – algumas chegaram a suspender programas de reciclagem porque saiu mais barato enviar tudo para o aterro . Em resumo, a menos que fatores externos mudem (como subsídios, imposições legais ou alta forte no custo do plástico virgem), a reciclagem mecânica tradicional tende a não se pagar por conta própria.

Diante desses fatos, fica claro porque diversos especialistas hoje pregam que a solução real está em reduzir e repensar o uso do plástico na fonte, não depositar fé cega na reciclagem . Reciclar ajudou a aliviar a culpa dos consumidores e a criar uma aura de responsabilidade nas empresas, mas não impediu que a produção global de plástico ultrapasse 400 milhões de toneladas ao ano e siga crescendo . O símbolo triangular das “setas de reciclagem” virou quase um talismã – presente em praticamente todo produto – mas em muitos casos é enganoso . Tanto que a EPA (agência ambiental dos EUA) recomendou eliminar o tradicional símbolo de setas em produtos que não tenham logística real de reciclagem . Em outras palavras, chegou-se ao ponto em que ostentar reciclagem fictícia é pior por induzir consumidores ao erro.

Discurso vs. Prática: Embalagem Bonita para Modelos Predatórios

Toda essa disparidade entre narrativa e realidade acende um alerta: o ESG corre o risco de virar “embalagem bonita” para modelos de negócio predatórios. Empresas poluentes ou socialmente irresponsáveis podem continuar operando como sempre, desde que empacotem suas práticas em relatórios coloridos, jargões de sustentabilidade e comitês de compliance. A diferença entre o discurso e a prática torna-se abissal. Vende-se a imagem de “mudar o mundo” enquanto, sob a nova embalagem, a mesma máquina de degradação continua rodando.

Isso não é paranoia – já vemos exemplos concretos. Há empresas listadas em índices “sustentáveis” que na essência pouco diferem de pares não ESG, usando compensações cosméticas para ganhar selo verde. Um executivo brasileiro resumiu bem: o boom do ESG ganhou contornos “enlatados e inorgânicos”, em que companhias acharam que padronizar indicadores e discursos bastaria para atender a boas práticas . Relatórios em papel reciclado com fotos de comunidades e projetos socioambientais floreiam um documento, mas não mascaram um modelo insustentável quando não há efeito positivo real nas operações . Em última instância, esse greenwashing (termo chique para propaganda ambiental enganosa) cria uma complacência perigosa. Gestores se iludem achando que cumprir formalidades de ESG é suficiente, enquanto deixam de atacar o cerne – seja a pegada ambiental enorme, seja a exploração de trabalhadores ou a governança temerária.

E por falar em governança: o “G” do ESG muitas vezes fica esquecido atrás do verniz verde. Empresas focam em campanhas ambientais de fachada, mas continuam falhando em transparência básica e ética nos negócios – vide escândalos contábeis recentes onde compliance existia só no papel. Investidores já notam essa incoerência: falta credibilidade quando a preocupação com ESG é superficial . O resultado é um tiro no pé: a agenda ESG vira vítima de si mesma, sabotada pela falta de seriedade de quem a utiliza apenas como escudo reputacional.

Compliance: a obediência que vira espetáculo

À primeira vista, compliance soa como sinônimo de integridade. Mas, no fundo, significa apenas aderência a regras formais — regras que, em geral, foram escritas por quem já detém o poder. Isso quer dizer que uma empresa pode estar “em compliance” e ainda assim ser predatória, desigual ou antiética.

Na prática, o compliance muitas vezes se limita a manuais, treinamentos e departamentos inteiros voltados a provar conformidade, sem nunca tocar no impacto real da empresa sobre a sociedade. É um jogo de aparência: cria-se um ambiente de controles e auditorias internas que transmitem a sensação de correção, mas que, na essência, servem para blindar a empresa de riscos legais e reputacionais.

Isso leva a um paradoxo: uma companhia pode estar impecavelmente “em compliance” com leis trabalhistas locais e, ao mesmo tempo, operar em países onde os direitos dos trabalhadores são mínimos. Pode cumprir normas ambientais e, mesmo assim, explorar brechas regulatórias para poluir regiões com fiscalização frágil. O cumprimento formal da regra substitui a reflexão ética, e o “manual de compliance” vira um álibi para a continuidade de práticas injustas.

No limite, o compliance se torna um espetáculo burocrático: pilhas de relatórios, certificações e indicadores que sinalizam obediência, mas que não mudam a essência do negócio. É uma forma de legalizar a injustiça — desde que ela esteja dentro das linhas escritas da norma vigente.

Governança corporativa: democracia prometida, concentração entregue

A governança corporativa é apresentada como o grande pilar da transparência, do equilíbrio entre acionistas e da preservação do interesse coletivo. Em teoria, é sobre distribuir poder, aumentar a responsabilidade e democratizar decisões.

Na prática, porém, a governança frequentemente se converte em um sofisticado sistema de blindagem. Estruturas como conselhos, comitês e regulamentos internos são construídas não para abrir poder de decisão, mas para preservar o controle de quem já manda. O discurso fala em pluralidade, mas a realidade é concentração.

Conselhos de administração muitas vezes são formados por membros alinhados aos controladores, escolhidos a dedo, que pouco questionam as decisões centrais. Assembleias tornam-se rituais burocráticos onde os minoritários não têm voz real. A suposta “transparência” aparece em relatórios longos, gráficos e índices — mas que servem mais para reforçar a confiança dos investidores do que para empoderar a sociedade.

Além disso, a governança frequentemente é usada como escudo patrimonial e jurídico. Estruturas complexas, holdings e conselhos blindam dirigentes de responsabilidades diretas, dificultando a responsabilização em casos de abuso, fraude ou desastre socioambiental. O verniz da boa governança, nesse sentido, confere legitimidade ao poder privado, mesmo quando ele contraria o interesse público.

Em vez de democratizar, a governança se torna um ritual de legitimação do status quo. O resultado é que as decisões continuam concentradas no topo, enquanto o discurso de boas práticas serve para reforçar a narrativa de que tudo é transparente e equilibrado.

Assim, tanto compliance quanto governança corporativa compartilham o mesmo destino de parte do ESG: serem transformados em linguagem de fachada. Não instrumentos de transformação, mas estruturas de autoproteção e marketing institucional.

Estamos mudando o mundo ou só renovando a embalagem da mesma máquina?

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Referências

  1. Times Union. Editorial: Our plastic planet. Agosto de 2025.

    Disponível em: https://www.timesunion.com/opinion/article/editorial-plastic-planet-20827828.php

  2. AP (Associated Press). Only 9% of all the plastic waste generated globally is recycled; 79% ends up in landfills or in nature. Publicado em rede social (Facebook).

    Disponível em: https://www.facebook.com/UNBiodiversityConvention/posts/%EF%B8%8F-only-9-of-all-the-plasticwaste-generated-globally-is-recycled-79-ends-up-in-la/925287916302953/

  3. World Bank. Global Waste to Grow by 70% by 2050 Unless Urgent Action is Taken: World Bank Report. Press release, 20 de setembro de 2018.

    Disponível em: https://www.worldbank.org/en/news/press-release/2018/09/20/global-waste-to-grow-by-70-percent-by-2050-unless-urgent-action-is-taken-world-bank-report

  4. UNDP (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Why aren’t we recycling more plastic? Blog UNDP, publicado em 28 de novembro de 2023.

    Disponível em: https://stories.undp.org/why-arent-we-recycling-more-plastic

  5. World Bank (Relatório técnico). What a Waste 2.0: A Global Snapshot of Solid Waste Management to 2050.

    Disponível em: https://hdl.handle.net/10986/30317

  6. UNEP (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). UNRIC Library Backgrounder: Plastic Pollution.Publicado em briefing online, atualizado há cerca de 6 meses.

    Disponível em: https://unep.org/plastic-pollution