Governo gastando: solução ou problema para o crescimento?

Multiplicador Keynesiano

Ticiano Cardoso

8/21/20259 min read

Imagine que o governo decida construir uma nova estrada. Esse simples ato pode desencadear uma reação em cadeia na economia – quase como um dominó invisível dos gastos públicos. A empresa de construção recebe recursos, paga salários e compra materiais; os trabalhadores pagos gastam seu dinheiro no comércio local; os lojistas, por sua vez, aumentam pedidos aos fornecedores. Em pouco tempo, aquele investimento inicial do governo se multiplica em diversas rodadas de renda e consumo. Em outras palavras, R$ 1 pode virar R$ 3 na economia, ou até mais, graças a esse efeito cascata. Esse fenômeno é conhecido como Multiplicador Keynesiano, um conceito central da macroeconomia que explica como decisões de gasto público geram efeitos em cadeia no crescimento econômico.

Como R$ 1 pode virar R$ 3 na economia

O multiplicador keynesiano parte de uma ideia simples: um gasto inicial x gera um impacto maior que x no PIB. Isso acontece porque parte de qualquer renda recebida é gasta novamente, criando nova renda para outros. Suponha, por exemplo, que de cada real adicional que uma pessoa receba, ela gaste 2/3 (aprox. 0,67) e poupe 1/3. Nesse caso, a chamada propensão marginal a consumir (fração de renda extra gasta em consumo) seria 0,67, e o multiplicador seria aproximadamente 1/(1 – 0,67) ≈ 3. Ou seja, cada R$ 1 inicial injetado poderia gerar cerca de R$ 3 em produção após várias rodadas de gastos. Se as pessoas gastassem uma parcela ainda maior da renda extra – digamos 0,8 ou 0,9 – o multiplicador seria mais elevado (por exemplo, com 0,9 chegaria teoricamente a 10 ). Por outro lado, se gastassem menos (propensão menor), o multiplicador seria mais baixo, tendendo ao mínimo de 1 (caso quase toda renda extra fosse poupada).

Esse efeito pode ser ilustrado passo a passo. Imagine R$ 1,00 gasto pelo governo numa obra. Esse R$ 1,00 vira renda para alguém – digamos que R$ 0,67 seja gasto novamente em consumo. Esses R$ 0,67 viram renda para outros, que por sua vez gastam cerca de 67% desse valor (R$ 0,45) em outra rodada, e assim por diante. A soma de todas essas rodadas de gastos sucessivos acaba totalizando aproximadamente R$ 3,00 de PIB gerado para cada real inicial. Em termos técnicos, o multiplicador k pode ser calculado pela fórmula básica k = 1/(1 – c), em que c é a propensão marginal a consumir . Quanto maior for c, maior será o multiplicador, pois mais do dinheiro inicial “circula” em vez de estagnar em poupança. Em economias com governo e setor externo, a fórmula se ajusta para incluir impostos e importações, mas a essência permanece: gastos iniciais se propagam pela economia, amplificando seu impacto total .

O dominó invisível dos gastos públicos

Por que chamamos esse processo de “dominó invisível”? Porque o efeito multiplicador não é imediatamente visível como uma fileira de peças caindo, mas opera de forma difusa e contínua. Cada transação econômica aciona a próxima, e o ciclo pode ganhar vida própria. O gasto público inicial atua como a primeira peça do dominó: ao pagar um fornecedor ou funcionário, o governo está colocando dinheiro no bolso de agentes privados. Esses agentes, ao gastar parte desse rendimento, derrubam a segunda peça do dominó – geram vendas para empresas, que então pagam seus empregados e encomendas a fornecedores, derrubando a terceira peça, e assim sucessivamente. O resultado é um encadeamento de novas rodadas de renda, consumo e produção movidas por aquele impulso inicial.

Importante destacar que esse mecanismo vale para qualquer tipo de gasto autônomo na economia, não apenas o governo. Investimentos de empresas ou um boom de consumo das famílias também funcionam como o primeiro dominó a cair. A grande contribuição de John Maynard Keynes foi notar que, em momentos de economia fraca, o governo pode assumir o papel de empurrar a primeira peça, estimulando a demanda agregada quando ninguém mais o faz. Assim, políticas fiscais expansionistas (como aumento de gastos ou redução de impostos) podem tirar a economia da inércia, criando empregos e elevando a renda através do multiplicador.

Multiplicadores de consumo, investimento e política fiscal

Embora o princípio do multiplicador seja geral, nem todos os gastos têm o mesmo impacto multiplicador. No modelo simples, um aumento de qualquer componente autônomo da demanda – seja consumo, investimento privado ou gasto público – pode impulsionar o PIB de forma similar. Porém, na prática, alguns tipos de despesa geram efeitos mais fortes que outros. Por exemplo, um aumento no consumo das famílias (digamos, motivado por transferência de renda ou redução de impostos) tende a se espalhar rapidamente pelo comércio e serviços. Já um investimento público em infraestrutura não só gera empregos e demanda imediata por materiais, como também pode aumentar a produtividade da economia no futuro (melhorando estradas, portos, etc.), às vezes resultando em um multiplicador mais alto.

Estudos empíricos confirmam essas diferenças. No Brasil, pesquisas do Instituto Brasileiro de Economia (FGV IBRE) mostraram que R$ 1,00 gasto em investimentos públicos pode acrescentar até R$ 2,20 ao PIB, no pico do efeito multiplicador, enquanto R$ 1,00 em transferências de renda (como benefícios sociais) agrega em torno de R$ 0,72 ao PIB . Ou seja, investimentos do governo têm um multiplicador bem maior que transferências diretas de renda, embora ambos estimulem a economia. Da mesma forma, a redução de impostos tende a ter multiplicador menor que o gasto direto, porque parte do dinheiro pode ser poupado pelos contribuintes em vez de consumido. Vale lembrar também do chamado teorema do orçamento equilibrado: se o governo aumenta gastos em R$ 1 financiados por um aumento equivalente de impostos, o multiplicador aproximado é 1 – isso porque o impulso do gasto é contrabalançado pela renda retirada via tributação. Em outras palavras, para obter um multiplicador alto, o governo precisa injetar recursos líquidos na economia, seja via gasto ou corte de tributos deficitário.

Também há diferenças conforme o contexto: países desenvolvidos costumam apresentar multiplicadores fiscais maiores que economias emergentes. Nos EUA, por exemplo, estimativas clássicas apontam multiplicadores em torno de 1,3 no curto prazo , enquanto no Brasil os valores médios ficam abaixo de 1 – em parte porque aqui uma parcela do estímulo “vaza” em importações e porque historicamente enfrentamos limitações fiscais e estruturais. Ainda assim, o multiplicador brasileiro não é desprezível: aproximadamente 0,5 a 0,9 em condições normais , podendo chegar a mais de 2 em investimentos públicos específicos . Isso significa que políticas de incentivo ao investimento público podem ser especialmente poderosas para alavancar o crescimento em economias em desenvolvimento.

Por que cortar investimento trava o país

Se gastar tem esse efeito multiplicador, o que acontece quando o governo corta gastos, especialmente investimentos? Em geral, o processo se reversa: reduz-se a demanda inicial e, em cascata, a renda e o consumo em cada rodada seguinte também diminuem. Cortar investimento público “trava” o país porque remove um dos motores mais potentes do crescimento. Lembre que investimentos governamentais, além do impacto imediato, aumentam a capacidade produtiva futura (uma nova estrada facilita negócios, uma nova escola forma trabalhadores mais qualificados, etc.). Assim, seu corte gera um duplo prejuízo: freia a atividade presente e compromete o potencial futuro.

Evidências respaldam essa ideia. O Fundo Monetário Internacional (FMI) analisou ajustes fiscais em países da América Latina e concluiu que um corte no investimento público causa muito mais dano ao crescimento de curto prazo do que cortes em outras despesas . De fato, esse estudo estimou que multiplicadores do investimento público alcançam cerca de 1,5, enquanto a maioria dos gastos correntes tem multiplicadores em torno de 0,5 . Em outras palavras, reduzir investimentos puxa o PIB para baixo de forma mais pronunciada – quase como remover a peça central do dominó, fazendo o encadeamento de renda desmoronar mais intensamente. Por isso, economistas frequentemente alertam: ajustes nas contas públicas devem preservar ao máximo os investimentos produtivos, sob risco de o remédio (corte) agravar a doença (recessão e desemprego).

No Brasil, sentimos isso na pele em vários momentos. Por exemplo, durante crises, cortes abruptos em obras de infraestrutura e programas de investimento resultaram em demissões na construção civil, queda de encomendas na indústria de materiais e retração nas regiões afetadas. Sem o efeito multiplicador desses projetos, a economia perde um importante impulso, e a recuperação se torna mais lenta. Portanto, cortar investimento “trava” o país justamente por desligar um dos motores do crescimento, deixando trabalhadores sem emprego e empresas sem demanda num efeito dominó ao contrário.

Limites e riscos do modelo

Até aqui, o multiplicador Keynesiano parece quase mágico – mas há limites e riscos importantes a considerar. O primeiro limite é a capacidade da economia. O efeito multiplicador funciona melhor quando há capacidade ociosa – isto é, recursos desempregados (trabalhadores desocupados, fábricas paradas). Nessas condições, aumentar a demanda ativa produção extra. Porém, se a economia já está operando perto do pleno emprego, um estímulo adicional tende a se converter mais em inflação do que em aumento real de produção . É como pisar no acelerador de um carro já em velocidade máxima – o resultado é superaquecer (preços subindo) em vez de ganhar velocidade.

Outro fator são os vazamentos do circuito do multiplicador. Parte do dinheiro extra pode “escapar” para fora do ciclo doméstico. Por exemplo, se as famílias gastam muito em produtos importados, esse gasto não vira renda interna, enfraquecendo o efeito multiplicador doméstico . Da mesma forma, se uma fatia significativa da renda adicional for poupada ou usada para pagar dívidas, reduz-se o montante que volta ao consumo, limitando as rodadas seguintes. Quanto menor a propensão a consumir localmente, menor o multiplicador efetivo.

Há também o lado financeiro e de expectativas. Se o governo aumenta gastos de forma descontrolada, pode gerar preocupação com a sustentabilidade fiscal – isto é, se vai conseguir pagar suas dívidas. Expectativas de endividamento alto no futuro podem levar consumidores e empresários a se comportar de forma mais cautelosa (poupando mais, investindo menos), reduzindo o efeito do estímulo presente. Além disso, déficits altos hoje podem forçar ajustes futuros (aumento de impostos ou cortes de gastos) que anulam o ganho inicial . Uma pesquisa citada pelo Banco Central do Brasil aponta que países muito endividados tendem a ter multiplicadores bem menores, às vezes próximos de zero , pois parte do estímulo é neutralizada por fatores como alta de juros ou queda de confiança. Ou seja, o multiplicador não é uma garantia infalível – seu tamanho depende do contexto econômico. Modelos teóricos keynesianos simples já previam isso: economias fechadas, sem vazamentos e com política monetária acomodatícia podem ter multiplicadores elevados (em casos extremos, entre 2 e 10) , enquanto cenários de economia aberta, com Banco Central subindo juros, ou consumidores receosos podem derrubar o multiplicador para abaixo de 1.

Resumindo, o multiplicador Keynesiano tem maior efeito em épocas de recessão ou ociosidade, quando há espaço para crescer, e efeito menor ou nulo em situações de plena capacidade ou desconfiança fiscal. O governo precisa dosar bem suas políticas: o mesmo gasto que salva a economia do atoleiro em um momento pode, em outra conjuntura, gerar dívida e inflação sem muito crescimento. Conhecer os limites do multiplicador é essencial para usá-lo com eficácia e responsabilidade.

Se o governo gastar, você sente no bolso

O conceito de multiplicador pode soar abstrato, mas suas consequências são sentidas no dia a dia de todos nós – em outras palavras, se o governo gastar, você sente no bolso. Quando políticas públicas impulsionam a economia, os efeitos aparecem em oportunidades de emprego, renda e até na movimentação do comércio local. Pense em uma nova obra pública na sua cidade: pode ser que você ou alguém que você conhece consiga um trabalho nela; mesmo que não, os trabalhadores contratados agora têm renda para consumir nos mercados, padarias ou no seu negócio, aumentando seu faturamento. Da mesma forma, quando o governo investe em setores estratégicos, isso pode significar melhorias de infraestrutura e serviços que facilitam a vida das empresas e dos cidadãos – o crescimento econômico resultante pode significar mais clientes, salários melhores e um ambiente econômico mais favorável para todos.

Por outro lado, quando o governo corta gastos de forma brusca, especialmente investimentos, esse aperto também é sentido: obras paradas significam menos empregos, menos dinheiro circulando no comércio e possivelmente serviços públicos de pior qualidade. É por isso que debates sobre orçamento público não são assunto restrito a Brasília – eles se refletem no seu cotidiano. O multiplicador keynesiano mostra que há uma interconexão forte entre a decisão de gastos públicos e a prosperidade do setor privado e das famílias. Em suma, decisões do governo de gastar ou economizar afetam diretamente o crescimento econômico e, em última instância, o seu bolso.

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Referências

• FMI – Ajuste fiscal e crescimento: um dilema de política econômica. 12 de julho de 2018. Disponível em: https://www.imf.org/pt/Blogs/Articles/2018/07/12/blog-fiscal-adjustment

• Banco Central do Brasil – Relatório de Inflação – Março 2011 (Box “Multiplicador Fiscal, Produto e Inflação”). Disponível em: https://www.bcb.gov.br/htms/relinf/port/2011/03/ri201103b8p.pdf

• FGV IBRE – Multiplicadores Fiscais no Brasil. Relatório de 15 de outubro de 2016. Disponível em: https://portalibre.fgv.br/publicacoes/artigos/multiplicadores-fiscais-no-brasil