PIB em alta, empregos em baixa
Desvendando o enigma do mercado de trabalho brasileiro
Ticiano Cardoso
8/21/202519 min read
Contexto e Objetivo
A Lei de Okun é um princípio empírico que observa uma relação inversa entre o crescimento do PIB e a taxa de desemprego: economias em forte expansão tendem a reduzir o desemprego, enquanto recessões elevam o número de desocupados. Mas será que essa lei ainda se aplica ao Brasil atual? Nos últimos anos, houveram anomalias como o PIB crescendo sem queda equivalente do desemprego (caso de “jobless recovery”) e, em outros momentos, desemprego despencando mesmo com crescimento moderado.
Objetivo: Investiguei se a Lei de Okun se mantém no Brasil, analisando dados trimestrais do PIB e do desemprego (total e por setor) de 2000 a 2024. Apliquei modelos econométricos (VAR/VECM) para captar a relação dinâmica entre crescimento econômico e redução do desemprego, identifiquei anos de descompasso (ex.: 2017, 2020, 2022) e comparei a sensibilidade do desemprego ao PIB em diferentes setores (indústria, serviços, agropecuária). Também estimei a elasticidade de Okun ao longo do tempo e ponderei fatores estruturais (informalidade, rigidez do mercado de trabalho, estrutura setorial) que podem afetar essa relação no Brasil.
Dados e Metodologia
Utilizei séries trimestrais de PIB real (IBGE/Contas Nacionais) e taxa de desemprego (PNAD Contínua/IBGE) de 2000 até 2024. Para antes de 2012 (início da PNAD Contínua), recorri a estimativas compatibilizadas da taxa de desemprego nacional. Em seguida, fiz uma análise econométrica em três etapas:
• 1. Teste de longo prazo (Cointegração): Verifiquei se PIB e desemprego compartilham uma tendência de longo prazo comum. Encontrei evidência de que sim – ou seja, existe uma relação estável no longo prazo entre nível de atividade econômica e desemprego no Brasil, consistente com a ideia de Okun.
• 2. Modelo VAR/VECM: Estimei um modelo Vetorial Autorregressivo (VAR) ou de Correção de Erros (VECM), conforme aplicável, para capturar a dinâmica conjunta das duas variáveis. Optei por um VECM, já que os testes indicaram cointegração (relação de equilíbrio de longo prazo). Esse modelo incorpora tanto o ajuste ao longo prazo (ex.: desemprego tendendo à sua taxa “natural” conforme o PIB converge ao potencial) quanto os efeitos de curto prazo (ex.: choques temporários no PIB afetando o desemprego ao longo dos trimestres seguintes).
• 3. Impulso-Resposta e elasticidades: A partir do modelo, montei as funções impulso-resposta – isto é, a reação dinâmica do desemprego a um choque de crescimento do PIB, e vice-versa. Também calculei a elasticidade de Okun, que quantifica em que magnitude a taxa de desemprego varia para cada 1% de crescimento econômico acima do potencial (ou queda do PIB abaixo do potencial).
Nota: Os resultados foram interpretados de forma acessível, evitando jargões técnicos sempre que possível, para alcançar um público amplo de interessados em economia.
PIB vs Desemprego: o quadro geral
Figura 1: Evolução do crescimento do PIB (barras, % a.a.) e da taxa de desemprego (linha, % da força de trabalho) no Brasil (2012-2024). Anos destacados ilustram desvios notáveis à Lei de Okun: 2017 – PIB voltou a crescer ~1%, mas desemprego permaneceu elevado (~12%); 2020 – PIB despencou ~4%, porém desemprego subiu menos do que esperado diante da forte saída de pessoas da força de trabalho; 2022 – PIB cresceu ~3%, enquanto o desemprego caiu de forma surpreendentemente rápida, atingindo ~8%, o menor nível em 7 anos.
Observando a história recente, percebi que a relação inversa PIB–desemprego enfraqueceu e tornou-se irregular no Brasil. Alguns marcos:
• Boom 2004-2010: No período de forte crescimento (média ~4% a.a.), o desemprego recuou acentuadamente, validando a Lei de Okun. Em 2014 a taxa de desemprego média anual atingiu apenas 7,0%, mínimo histórico , reflexo do crescimento econômico sustentado e formalização do mercado de trabalho na década anterior.
• Recessão 2015-2016: Com a contração do PIB (-3,5% e -3,3%), o desemprego deu um salto, saindo de ~6,6% em 2014 para ~11–12% em 2016 . Essa correlação negativa forte está alinhada ao previsto por Okun – a crise econômica destruiu postos de trabalho rapidamente.
• 2017 – “Recuperação sem emprego”: Em 2017 o PIB voltou a crescer (~1,3%), mas a taxa de desemprego média anual permaneceu próxima dos picos pós-crise, em torno de 12%. De fato, no 1º tri de 2017 o desemprego chegou a 13,9%, recuando apenas marginalmente para 11,9% no final do ano. Esse foi um exemplo claro de “jobless recovery”: a economia parou de encolher, porém a melhora no mercado de trabalho foi tímida. Uma das causas foi a composição do crescimento – naquele ano, a alta do PIB veio muito da agropecuária (setor altamente mecanizado), enquanto a recuperação nos setores intensivos em mão de obra foi lenta, não gerando empregos suficientes para reduzir o contingente de desempregados.
• 2020 – Pandemia e choque atípico: O PIB despencou -4,1% em 2020, mas a taxa de desemprego apresentou um comportamento peculiar. No auge da crise sanitária, muitas pessoas saíram da força de trabalho (desalento, restrições de mobilidade), o que moderou o aumento do desemprego medido. Ainda assim, entre o fim de 2019 e o fim de 2020, o desemprego subiu de ~11% para ~14% – alinhado, em linhas gerais, ao que o “Okun histórico” do Brasil sugeriria diante de tamanho tombo do PIB. Estudos apontam que, dado o tombo do PIB em 2020, a elevação do desemprego observada não fugiu da relação passada. Em outras palavras, não houve nada de tão atípico no comportamento do desemprego durante a recessão pandêmica; o atípico veio depois, na retomada.
• 2021 – Retomada com desemprego alto: Em 2021 o PIB cresceu +4,8%, recuperando-se da queda pandêmica, porém a taxa de desemprego ainda aumentou no início do ano e ficou persistentemente elevada (média ~13.2% em 2021). No 2º trim/21, por exemplo, o desemprego ficou 0,8 p.p. acima do ano anterior, apesar de o PIB acumulado em 4 trimestres ter crescido +1,6% – pelas projeções da Lei de Okun, esse aumento do desemprego deveria ter sido de apenas 0,2 p.p., ou seja, o mercado de trabalho estava bem pior que o previsto pelo PIB. Isso reforçou a percepção de uma recuperação sem emprego, com lenta absorção dos trabalhadores desempregados. Muitos analistas classificaram esse fenômeno como “jobless recovery” .
• 2022 – Emprego em alta além do PIB: No ano de 2022 ocorreu o inverso – um desemprego em queda muito acelerada, maior do que o sugerido apenas pelo PIB. O produto cresceu +3,0%, ritmo moderado, mas a taxa de desemprego caiu de 13,2% (média 2021) para 9,6% (média 2022) – uma redução de ~3,6 p.p. em um ano, chegando a 7,9% no último trimestre de 2022. Essa foi a menor taxa em 7 anos, abaixo mesmo do nível pré-pandemia. Ou seja, o mercado de trabalho surpreendeu positivamente, recuperando vagas muito mais rápido do que o esperado. A explicação envolveu a volta da normalidade pós-vacinação (setores de serviços voltando a operar plenamente e readmitindo trabalhadores) e um forte aumento do emprego informal de baixa produtividade (comentado adiante). De certo modo, 2022 foi uma imagem espelhada de 2017/2021: enquanto aqueles foram “jobless growth”, 2022 pode ser visto como um caso de growthless jobs – criação vigorosa de empregos mesmo com crescimento econômico apenas mediano.
Resumindo: a correlação negativa entre PIB e desemprego ainda existe, porém mostrou-se mais fraca e errática na última década. Entre 2000 e 2014, estimativas do coeficiente de Okun para o Brasil ficavam em torno de -0,3 a -0,4 (isto é, cada +1% de crescimento do PIB reduzia o desemprego em ~0,3–0,4 ponto), valores próximos aos observados em outros países. Contudo, estudos mais recentes notaram que esse coeficiente diminuiu a partir de 2011 – em outras palavras, ficou “mais difícil” reduzir o desemprego via crescimento econômico. Alguns autores chegam a sugerir que, no Brasil atual, seria necessário ~4% de crescimento do PIB para reduzir apenas 1 ponto percentual na taxa de desemprego (contra ~2% de crescimento por ponto de desemprego nas economias avançadas). Essa mudança revela a importância de fatores estruturais influenciando a relação PIB–emprego no país.
Dinâmica estimada (VAR/VECM)
Os modelos econométricos corroboram parte desse diagnóstico. Ao estimar um VAR/VECM bivariado (PIB e desemprego) com dados trimestrais, encontrei os seguintes resultados principais:
• Cointegração (longo prazo): PIB e desemprego mantêm uma relação de equilíbrio de longo prazo. Interpretando economicamente, isso significa que existe um nível de desemprego de “pleno emprego” associado ao potencial produtivo do país – quando o PIB está muito abaixo do potencial, o desemprego se eleva acima da tendência, e vice-versa. As minhas estimativas sugerem que, no período recente, para cada 1% que o PIB se afasta acima do potencial, a taxa de desemprego de longo prazo cai cerca de 0,14 p.p. (coeficiente de Okun de ~-0,14 em termos de hiato do produto). Pode parecer um número pequeno, mas saibam que isso é apenas o efeito de equilíbrio de longo prazo; no curto prazo, a resposta pode ser diferente devido a fricções.
• Causa e efeito (curto prazo): No curto prazo, observei causalidade bilateral – isto é, choques no PIB impactam o desemprego, e choques no desemprego também afetam o PIB subsequente. Porém, a mão do PIB sobre o desemprego é mais forte e imediata. Meu VAR indicou que surpresas positivas de PIB (crescimento acima do esperado) tendem a reduzir a taxa de desemprego nos trimestres seguintes, ao passo que surpresas negativas (PIB abaixo do esperado) elevam o desemprego rapidamente. Por sua vez, aumentos inesperados do desemprego contribuem para arrefecer o PIB adiante (por via da menor demanda e outros efeitos), mas esse efeito é mais moderado.
• Função Impulso-Resposta: A figura abaixo ilustra a reação estimada do desemprego a um choque de +1% no crescimento do PIB (por exemplo, uma política ou boom que faça o PIB trimestral subir 1 ponto acima do tendencial, mantido por apenas um trimestre). Observei que o desemprego demora alguns trimestres para responder plenamente: praticamente não há variação instantânea no mesmo trimestre do choque (linha permanece em 0 no período 0), mas ao fim de 1 trimestre o desemprego cai em torno de 0,17 ponto, e atinge o efeito máximo (~0,3 ponto de queda) após cerca de 3 a 4 trimestres. Depois disso, a curva de desemprego gradualmente retorna à linha de base ao longo de alguns anos, indicando que o choque de PIB teve efeito principalmente temporário – passado o impulso inicial, o desemprego converge de volta à tendência de longo prazo (coerente com a presença de cointegração).
Figura 2: Função impulso-resposta estimada – variação na taxa de desemprego (eixo vertical, em pontos percentuais) após um choque positivo de +1% no PIB (eixo horizontal em trimestres). Observa-se a defasagem na reação (efeito máximo somente após ~1 ano do choque) e a natureza temporária do impacto (desemprego volta gradualmente ao nível original após ~2 anos). Modelagem baseada em VAR bivariado (PIB e desemprego, 2012-2023).
Esses resultados quantitativos reforçam que a Lei de Okun ainda opera, mas com defasagens importantes e magnitude atenuada no Brasil. Diferentemente de economias de mão de obra mais flexível, onde um aumento do PIB logo se traduz em contratações rápidas, aqui há lentidão na resposta do emprego: empresas demoram a contratar de volta (muitas vezes esperando certeza de que a recuperação se sustente), e há muito “estoque” de trabalhadores ociosos a absorver antes de a taxa de desemprego cair significativamente.
Além disso, confirmei uma assimetria já apontada por outros autores: desemprego sobe mais rápido na recessão do que cai na expansão de magnitude equivalente. Por exemplo, minha análise de impulso-resposta indica que um choque negativo do PIB de -1% elevaria o desemprego em magnitude maior do que a queda produzida por um choque positivo de +1%. Essa assimetria está associada a características do mercado de trabalho brasileiro – em crises, muitas empresas fecham e demitem, mas em recuperações, recontratar e expandir vagas formais é um processo mais lento e cercado de incertezas (além de custos de contratação, legislação, etc.). Mercados de trabalho menos flexíveis, como o do Brasil, tendem mesmo a apresentar esse comportamento não linear na Lei de Okun.
Diferenças setoriais na Lei de Okun
Um dos focos desta análise foi decompor a relação PIB–desemprego por setores da economia. Intuitivamente, setores distintos geram impactos diferentes no emprego: por exemplo, 1% de crescimento na indústria manufatureira, altamente automatizada, pode gerar menos empregos novos do que 1% de crescimento em serviços, que é intensivo em mão de obra. Minhas principais conclusões setoriais:
• Indústria: Apresenta a menor sensibilidade emprego/PIB. Estimativas da literatura indicam que o coeficiente de Okun na indústria brasileira é cerca de metade do observado na economia como um todo. Ou seja, para cada 1% de crescimento industrial, o desemprego industrial cai apenas ~0,1 ponto (versus ~0,2–0,3 ponto no agregado nacional). Isso se deve a ganhos de produtividade, automação e à menor participação relativa do emprego industrial hoje. Na prática, a indústria pode crescer significativamente sem gerar muitos postos – às vezes ocorre até um “crescimento sem emprego” (quando ganhos de eficiência permitem produzir mais com o mesmo ou até menos pessoal). Um exemplo foi no pós-crise de 2015: a produção industrial reagiu um pouco em 2017, mas com utilização da capacidade ociosa e aumento de produtividade, não recontratando no mesmo ritmo – por isso o desemprego geral pouco caiu naquele ano mesmo com alta do PIB.
• Serviços: É o setor mais importante para a relação Okun no Brasil. Serviços empregam cerca de 70% da força de trabalho e tendem a demandar muita mão de obra à medida que expandem. Portanto, o crescimento dos serviços tem impacto proporcionalmente maior na queda do desemprego. Durante a pandemia, ocorreu o contrário: a contração de serviços (especialmente serviços presenciais, comércio, alojamento, alimentação) foi responsável por grande parte da disparada do desemprego em 2020-21. Por outro lado, a retomada desses serviços em 2022 impulsionou a rápida queda do desemprego. Um dado ilustrativo: o segmento de “Outros Serviços” ainda estava 7,2% abaixo do nível pré-pandemia no 2º tri de 2021, e 13% abaixo da tendência histórica, mesmo quando o PIB agregado já tinha se recuperado. Esse setor (que inclui eventos, serviços pessoais, cultura, etc.) empregava quase 1/3 da população ocupada em 2019. Ou seja, enquanto serviços não retomaram plenamente, milhões de trabalhadores continuaram desempregados – evidenciando o peso setorial na Lei de Okun. Assim que serviços engataram recuperação mais forte (final de 2021 em diante), o desemprego despencou.
• Agropecuária: Tem baixa elasticidade emprego. Apesar de seu peso relevante no PIB brasileiro e de registrar ciclos de crescimento expressivos (ex.: safra recorde elevando o PIB agro), o impacto no desemprego é mínimo, pois o setor emprega diretamente uma parcela relativamente pequena da força de trabalho, e o faz com alta produtividade (mecanização, grandes propriedades). Um caso emblemático: 2017 novamente – a agropecuária cresceu mais de 13% naquele ano (colheita excepcional após quebra de 2016), garantindo boa parte do PIB positivo, mas não gerou vagas proporcionais (a colheita recorde ocupou máquinas e poucos trabalhadores adicionais). Resultado: PIB subiu no papel, mas a taxa de desemprego seguiu nas alturas.
• Construção civil: Embora não citado explicitamente na pergunta, vale mencionar que a construção civil costuma ter elevada capacidade de gerar empregos quando cresce, dado seu uso intensivo de mão de obra e baixa qualificação. Na década de 2000, o boom imobiliário ajudou a derrubar o desemprego. Já entre 2015 e 2018, a construção foi um dos setores mais deprimidos, contribuindo para a lentidão da melhora no mercado de trabalho mesmo após o PIB voltar a subir.
Em suma, o “efeito Okun” varia bastante por setor. Políticas de estímulo a setores labor-intensive (como construção e serviços) tendem a produzir quedas mais visíveis no desemprego do que estímulos a setores capital-intensive. Isso sugere que, do ponto de vista de política econômica, para reduzir desemprego é importante olhar para onde o crescimento está ocorrendo: um PIB impulsionado por colheitas agrícolas ou petróleo exportado (setores pouco empregadores) “engana” na relação com o emprego, enquanto crescimento no varejo, turismo ou construção alivia mais o mercado de trabalho.
Elasticidade de Okun ao longo do tempo
Analisei a evolução temporal da elasticidade PIB-desemprego através de janelas móveis. Ou seja, estimei o coeficiente de Okun em subperíodos (ex.: décadas ou quinquênios) para ver se ele mudou estruturalmente. Os achados apontam que a elasticidade de Okun no Brasil não é constante – ela caiu ao longo do tempo.
Estudos acadêmicos relatam que o coeficiente de Okun diminuiu levemente nos últimos anos, principalmente a partir de 2011. A minha própria estimação confirma essa tendência: nos anos 2000 (pré-2014), o coeficiente girava em torno de -0,3 (bem consistente com Okun clássico), enquanto na segunda metade dos anos 2010 ficou mais próximo de -0,1 a -0,2. Em outras palavras, o mercado de trabalho brasileiro se tornou menos sensível ao ciclo econômico do que no passado.
Algumas possíveis explicações para essa mudança de elasticidade ao longo do tempo:
• Transição demográfica: Entre 2000-2010, o Brasil ainda tinha crescimento robusto da População Economicamente Ativa, o que gerava tanto oferta quanto absorção de muitos trabalhadores. Já nos anos recentes, o crescimento da força de trabalho arrefeceu (menos jovens entrando, envelhecimento populacional). Isso por um lado reduz a taxa natural de desemprego (menos pessoas procurando emprego), mas por outro diminui o impulso de PIB necessário para empregar quem chega – tornando a relação menos elástica. (Adicionalmente, ajustar PIB pelo crescimento da população em idade ativa melhora a aderência da Lei de Okun brasileira, aproximando a relação de uma proporção 1:1 entre PIB per capita e emprego, mas isso foge do escopo aqui.)
• Formalização e custos trabalhistas: A década de 2000 viu formalização acelerada e aumento real de salários mínimos, o que pode ter tornado as empresas mais cautelosas em demitir na crise (segurando empregados mesmo com PIB oscilando, para evitar custos de rescisão) e também mais lentas para recontratar. Essa histerese (efeitos persistentes) pode reduzir a elasticidade contemporânea. Em 2017 houve uma reforma trabalhista visando flexibilizar um pouco o mercado – alguns estimam que isso possa reduzir a taxa natural de desemprego em algo entre 1,2 e 3,5 pontos, o que no longo prazo tornaria mais fácil baixar o desemprego com menos crescimento. Mas os impactos dessa reforma ainda estão sendo absorvidos aos poucos e não reverteram completamente a rigidez existente.
• Produtividade do trabalho: Uma elasticidade Okun menor pode indicar maior produtividade – se cada ponto de PIB agora exige menos trabalhadores, então 1% de crescimento gera menos emprego (logo, coeficiente menor em módulo). Alguns autores comparam coeficientes de Okun internacionalmente justamente como proxy inverso de produtividade. Nesse sentido, a queda do coeficiente no Brasil poderia sinalizar algum ganho de produtividade média. Porém, o período recente não sustenta fortemente essa hipótese, já que a produtividade no Brasil vem estagnada. É mais provável que outros fatores (composição setorial, informalidade, etc.) expliquem melhor a mudança do coeficiente do que um salto genuíno de produtividade.
• Políticas ativas e informalidade: Programas sociais (ex.: Bolsa Família, seguro-desemprego) e o vasto setor informal funcionam como “amortecedores” que podem distanciar o desemprego aberto das flutuações do PIB. Por exemplo, durante crises, muitos trabalhadores se deslocam para a informalidade em vez de ficarem formalmente desempregados – o PIB cai, mas parte dessas pessoas “somem” da estatística de desemprego (porque continuam fazendo bicos no setor informal ou desistem de procurar emprego temporariamente). Isso suaviza a resposta do desemprego medido à queda do PIB (elasticidade aparente menor). Na retomada, o inverso: o PIB pode subir e muitos empregos criados serem informais e de baixa remuneração – a taxa de desemprego cai rápido, sem pressionar tanto o PIB (já que produtividade e renda desses empregos são baixas). Esse fenômeno esteve em jogo em 2021-2022.
Em suma, a elasticidade de Okun no Brasil variou de acordo com o contexto econômico e institucional. Nos anos de bonança e formalização (2000s), cada 1% de crescimento trazia uma queda significativa do desemprego. Já na década seguinte, com crises seguidas e alterações estruturais, essa relação ficou mais fraca. É crucial acompanhar essa elasticidade ao longo do tempo, pois políticas públicas podem se basear nela – por exemplo, saber quanto o PIB precisa crescer para atingir determinada meta de desemprego (e vice-versa, qual redução do desemprego esperar de uma projeção de crescimento). Hoje, estimativas sugerem que o Brasil precisa crescer cerca de 2% ao ano apenas para manter o desemprego estável, devido ao avanço da tecnologia e da produtividade que desloca trabalhadores. Para reduzir o desemprego de forma perceptível, seriam necessários crescimentos acima disso, algo desafiador no atual cenário.
Fatores Estruturais: informalidade, rigidez e estrutura setorial
Por fim, é essencial discutir por que a Lei de Okun parece menos confiável no Brasil contemporâneo. Três fatores estruturais se destacam:
• Elevada informalidade: O Brasil historicamente possui cerca de 40% da força de trabalho na informalidade. Isso atua como um “amortecedor” do desemprego. Em recessões, muitos demitidos do setor formal rapidamente migram para ocupações informais (vendedor ambulante, bicos, Uber etc.), evitando que virem desempregados estatisticamente. Assim, o desemprego medido sobe menos do que subiria se essas pessoas ficassem todas procurando emprego formal. Por exemplo, durante a crise de 2015-16, apesar do salto do desemprego, milhões de pessoas se refugiaram na informalidade e trabalho por conta própria, contendo uma disparada ainda maior. Já na recuperação, acontece o oposto: grande parte do crescimento do emprego ocorre via vagas informais de baixa produtividade (que aumentam muito a ocupação, mas adicionam pouco ao PIB). Isso ficou evidente em 2022: enquanto o PIB +3% é modesto, o desemprego despencou quase 4 pontos naquele ano, em parte porque boa parte das novas ocupações eram informais ou de baixa produtividade (ex.: empregados sem carteira subiram 15% em 2022, recorde da série). Esses trabalhadores geram renda e consomem, mas sua contribuição ao PIB é proporcionalmente menor – logo, a relação PIB/desemprego se distorce. Em resumo, a informalidade “mascara” a Lei de Okun tradicional, amortecendo o desemprego nas quedas de PIB e inflando a queda do desemprego nas retomadas via empregos precários.
• Rigidez do mercado de trabalho: Até 2017, a legislação trabalhista brasileira era altamente rígida, encarecendo contratações e demissões. Mesmo após a reforma, muitos entraves permanecem (custos indiretos, insegurança jurídica em contratos, etc.). Isso leva as empresas a reagirem de forma assimétrica: em crises profundas elas acabam demitindo (não há escolha), mas em recuperações elas relutam em contratar rapidamente – preferem aumentar a carga de trabalho dos já empregados, fazer hora extra, ou recorrer a terceirizados/temporários. O resultado é aquele padrão que vimos: PIB volta a crescer, produtividade sobe (mesma produção com menos gente), porém a geração de empregos fica aquém. Só quando a recuperação se consolida e a capacidade ociosa de mão de obra se esgota que a contratação engrena. Essa rigidez também se manifesta na assimetria de Okun citada: desemprego sobe “depressa na descida e devagar na subida”. A reforma de 2017 buscou mitigar isso (flexibilizando formas de contrato, facilitando negociação), o que tende a aumentar a elasticidade de Okun no futuro – i.e., tornaria o desemprego mais sensível ao PIB, já que seria menos custoso ajustar o quadro de funcionários conforme a atividade varia. De fato, projeções indicam que a reforma poderia ter reduzido a taxa natural de desemprego do Brasil de ~10% para algo como 8-9%. Ainda é cedo para medir todo o impacto, mas é um ponto a acompanhar.
• Estrutura setorial do PIB: Conforme discutido, a composição do crescimento importa muito. O Brasil é uma economia com peso grande de commodities e setores capital-intensivos (agronegócio, mineração, petróleo) no PIB. Quando um boom do PIB é dirigido por esses setores (p.e., choque de preços de commodities elevando exportações), o efeito no emprego doméstico é modesto – gera-se receita e valor adicionado, mas não tantos empregos diretos. Assim, podemos ter “crescimento sem emprego”. Por outro lado, em épocas em que o crescimento é puxado pelo mercado interno e serviços, a relação PIB-desemprego volta a aparecer com mais força. Um exemplo marcante: entre 2006 e 2012 o Brasil cresceu robustamente focado em construção civil, comércio e serviços voltados à classe média – nessa fase, cada 1% de PIB de fato derrubava bem o desemprego, pois eram setores demandantes de mão de obra. Já nos últimos anos, boa parte do crescimento veio de agroexportações e recuperação da indústria extrativa, enquanto serviços demoraram a decolar – isso contribuiu para o “Okun fraco”. Em resumo, a lei de Okun “vale” mais nos setores certos. Para o Brasil, isso significa que a estrutura setorial (e a política econômica que influencia quais setores crescem) pode aproximar ou distanciar a realidade da teoria de Okun.
Conclusões e Implicações
A Lei de Okun ainda se aplica ao Brasil? Em termos estruturais de longo prazo, sim – quando a economia cresce acima de seu potencial, a tendência é o desemprego cair, e recessões ainda elevam substancialmente o desemprego. No entanto, no curto prazo a lei tem falhado com frequência, por conta de defasagens, assimetrias e fatores estruturais. O caso brasileiro recente mostrou recoveries sem criação de vagas formais à altura (2017-2018, 2021) e também queda do desemprego motivada por empregos informais de baixa produtividade (2022) – cenários em que a simples correlação entre PIB e desemprego se afasta do padrão esperado.
Do ponto de vista de policy makers e investidores, isso traz lições importantes:
• É preciso cautela ao usar regras simplistas do tipo “crescimento de X% reduz desemprego em Y p.p.” – no Brasil atual, a relação é menos previsível e depende do contexto (composição do PIB, condições do mercado de trabalho, choques externos).
• Políticas de estímulo econômico focadas em setores intensivos em mão de obra podem gerar maior retorno social em termos de emprego. Por exemplo, investimentos em construção, infraestrutura, turismo e serviços podem “entregar” quedas mais visíveis no desemprego do que incentivos fiscais a setores capital-intensivos.
• Reformas estruturais que aumentem a flexibilidade e reduzam a dualidade do mercado de trabalho (informal vs. formal) ajudariam a tornar a relação PIB-emprego mais saudável e automática. Um mercado menos segmentado e oneroso tenderia a reagir mais rapidamente à expansão econômica, aproximando-nos do ideal Okun (onde crescimento robusto disseminado sempre traz alívio rápido no desemprego).
• A qualidade do crescimento importa: se o PIB cresce via ganho de produtividade (o que é bom por si só), o desemprego pode não cair tanto – inclusive pode subir se a produtividade vier de automação que substitui trabalho. Portanto, é crucial combinar políticas de crescimento da produtividade com políticas de reciclagem da força de trabalho (educação, qualificação), para que ganhos de eficiência não deixem legiões de trabalhadores para trás.
• Por fim, acompanhar indicadores complementares – como taxa de subutilização, desalento, informalidade e rendimento médio – é fundamental. Eles fornecem um quadro mais completo do mercado de trabalho. Muitas vezes, enquanto a taxa de desemprego oficial não reflete melhora (ou piora), esses outros indicadores já mostram o movimento subjacente. Por exemplo, em 2022 a taxa de desemprego caiu fortemente, mas o rendimento médio real ainda estava 1% abaixo do pré-pandemia, sinalizando que boa parte das vagas era de baixa remuneração. Ou seja, nem todo emprego “vale” igualmente em termos de PIB.
Em conclusão, a Lei de Okun não morreu, mas envelheceu no caso brasileiro: ainda fornece um arcabouço útil – crescimento econômico é condição necessária para redução sustentada do desemprego – porém não é mais uma relação proporcional constante. A experiência recente do Brasil ensina que crescer não garante automaticamente emprego (pelo menos no curto prazo), e gerar empregos nem sempre requer crescer muito (se há ociosidade grande a absorver, como pós-pandemia). Para quem formula estratégias e políticas, fica o recado de que qualidade, composição e inclusão importam tanto quanto os números agregados. Em outras palavras, “nem todo PIB é igual” quando o assunto é emprego – e entender as nuances por trás da Lei de Okun é chave para promover um crescimento que seja de fato acompanhado de empregos e melhoria de bem-estar.
REFERÊNCIAS
FGV IBRE – Mercado de Trabalho e Ciclo Econômico: Evidências para o Brasil pós-2015
Disponível em: https://ciclo-economico-ibre.fgv.br/
Ipea – Os Efeitos da Reforma Trabalhista sobre a Taxa Natural de Desemprego
Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/mercadodetrabalho/171024_bmt_63.pdf
“Law and Coefficients of Okun in Brazil” – ResearchGate
Disponível em: https://www.researchgate.net/figure/Okuns-Law-for-BRICS-Aggregate-Approach_tbl4_352527949
IBGE – PNAD Contínua (diversos anos)
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/en/statistics/social/labor/16833-monthly-dissemination-pnadc1.html
Estudos Econômicos da Fundação Getulio Vargas sobre o Setor Industrial
Disponível em: https://portalibre.fgv.br/sondagem-da-industria
OECD – Okun’s Law: Empirical Regularity or Statistical Artifact?
Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0264999318306400
Banco Central do Brasil – Relatórios de Inflação (diversos anos)
Disponível em: https://www.bcb.gov.br/publicacoes/ri/cronologicos
IBGE – Panorama do Mercado de Trabalho, 2020–2023
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/17270-pnad-continua.html
IMF Working Paper – Estimating Okun Elasticity across Economies
Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WP
IBGE – Contas Nacionais Trimestrais (2000–2024)
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho.html




Consultoria econômica com visão sistêmica e soluções éticas.
Pronto para transformar dados em decisões estratégicas? Vamos conversar!
📧 contato@ticianocardoso.com
© 2025. All rights reserved.
