Por que economizar pode custar mais caro?
Paradoxo de Jevons
Ticiano Cardoso
8/22/202510 min read
Você já trocou lâmpadas incandescentes por LEDs, esperando economizar energia e dinheiro? Já pensou que ao comprar um carro mais econômico estaria ajudando o planeta? Seria lógico supor que melhorar a eficiência dos recursos levaria a menos consumo. Mas e se eu te dissesse que, às vezes, acontece exatamente o contrário? Pois é disso que se trata o Paradoxo de Jevons – a estranha situação em que ganhos de eficiência acabam estimulando ainda mais consumo em vez de reduzi-lo.
Imagine a cena: você tem um ar-condicionado novo, com selo de eficiência energética “A”. Ele gela o ambiente gastando bem menos energia que o modelo antigo. Ótimo, certo? A conta de luz vem menor e você se sente até mais sustentável. Só que, sem perceber, você passa a deixar o ar ligado por mais tempo – afinal, “gasta pouco”. O resultado? Parte (ou toda) da economia de energia vai embora no maior uso do aparelho. Esse efeito perverso é conhecido como “efeito rebote” : quando o uso de algo fica mais barato ou eficiente, a gente tende a usar mais, compensando a economia. E não para por aí. Se a conta de luz reduz mesmo, você pode pegar o dinheiro “poupado” e, por exemplo, fazer uma viagem de avião extra nas férias ou comprar mais um gadget eletrônico. Assim, indiretamente aquela energia economizada em casa acaba fomentando consumo de energia em outro lugar. Viu a armadilha?
Quanto mais eficiente, mais a gente consome
Pode soar contraintuitivo, mas muitos avanços tecnológicos que tornaram produtos mais eficientes acabaram aumentando o uso total desses produtos. No século XIX, em plena Revolução Industrial na Inglaterra, observou-se algo curioso: cada melhoria na eficiência das máquinas a vapor – que consumiam carvão – levava as indústrias a usar mais carvão ao todo, em vez de menos. Na época, temia-se que as minas de carvão fossem se esgotar rapidamente. A solução tecnológica encontrada foi melhorar o rendimento das máquinas, obtendo mais trabalho com cada tonelada de carvão queimado. Só que esse carvão “barato” impulsionou a produção industrial e, no fim das contas, o consumo nacional de carvão disparou ao invés de cair. Em vez de economizar recursos, a eficiência liberou as rédeas do crescimento e virou combustível para ainda mais demanda. Essa foi a primeira identificação do Paradoxo de Jevons há mais de 150 anos, e desde então vemos variações dele em diversos setores.
No nosso dia a dia, exemplos não faltam. Carros que fazem mais quilômetros por litro? Tornam cada viagem mais barata, incentivando a gente a dirigir distâncias maiores ou a usar o carro com mais frequência . Lâmpadas LED super eficientes? Ficam tão baratas de usar que passamos a iluminar tudo, por mais tempo, dentro e fora de casa. Ar-condicionado inverter de última geração? Podemos cair na tentação de deixá-lo ligado até quando não seria tão necessário, só pelo conforto. Em casos assim, a eficiência melhora o desempenho e reduz o custo por uso, mas nós respondemos a isso usando mais. Como resultado, uma parte significativa da energia que seria economizada acaba sendo consumida de volta. Organismos internacionais estimam que, em média, entre 10% e 30% da energia poupada por aparelhos ou veículos mais eficientes pode ser “reabsorvida” por esse uso adicional . Ou seja, se um carro novo gasta 30% menos gasolina por quilômetro, os motoristas muitas vezes acabam dirigindo um pouco mais, eliminando até 1/3 da economia prevista. Em países desenvolvidos, onde as pessoas já satisfazem grande parte de suas necessidades básicas, normalmente o efeito rebote direto fica nesse patamar moderado (até uns 20–30%). Já em países emergentes, com muita demanda reprimida por bens de consumo e serviços de energia (mais gente querendo ter eletrodomésticos, veículos, climatização, etc.), esse efeito tende a ser bem maior. Afinal, se grande parte da população ainda não tinha acesso a certo conforto por causa do custo, quando a tecnologia eficiente barateia esse custo, o consumo pode aumentar drasticamente. Ainda assim, estudos indicam que mesmo nos mercados emergentes o rebote raramente chega a 100% – isto é, a eficiência ainda traz algum ganho líquido, embora menor do que o esperado.
Importante notar que o Paradoxo de Jevons é uma versão extrema do efeito rebote. Ele acontece quando a eficiência aumenta tanto (e a resposta em consumo é tão forte) que o consumo total do recurso fica maior do que antes da melhoria. Em outras palavras, mais de 100% da economia é anulada – vira um “tiro pela culatra”. Isso não é regra geral, mas já foi documentado. Um estudo citado pela revista The Economist usou modelos econômicos para estimar o impacto de tecnologias mais eficientes no consumo de energia dos Estados Unidos nas últimas décadas. O resultado? Praticamente todo o ganho de eficiência foi compensado pelo aumento de uso, a ponto de o consumo energético ficar ligeiramente 2% acima do que teria sido sem essas melhorias . Em termos simples: de nada adiantou a eficiência nesse período – a economia virou combustível para mais crescimento econômico e mais gasto de energia. Embora haja debate sobre métodos e cenários (afinal, esses cálculos dependem de modelos e suposições), esse achado acende um alerta: eficiência, sozinha, não garante redução absoluta de consumo. Se deixada somente às forças de mercado, ela pode até acelerar a exploração de recursos, repetindo o paradoxo.
O erro de achar que economizar energia salva o mundo
É claro que melhorar a eficiência energética é importante e desejável. Fazer mais com menos é fundamental para desacoplar nosso bem-estar do esgotamento de recursos naturais. O problema está em achar que isso, por si só, vai nos salvar – uma espécie de otimismo tecnológico ingênuo. Quantas vezes você já ouviu frases do tipo: “Se todo mundo trocar as lâmpadas e os eletrodomésticos por modelos eficientes, resolvemos a crise energética e as emissões de carbono”? Seria ótimo se fosse assim. Mas a realidade é mais complexa e um pouco irônica. Quando cada indivíduo ou empresa economiza energia com eficiência, a princípio temos, sim, uma redução de consumo. O perigo está na segunda ordem de efeitos: o que fazemos com essa economia.
Vamos desenhar um exemplo cotidiano. Digamos que uma família instale painéis solares em casa e passe a gerar parte da própria eletricidade. A conta de luz cai quase a zero. Empolgados com a “sobra” de dinheiro e energia, eles decidem comprar um aquecedor elétrico de piscina ou um segundo refrigerador, coisas que antes evitavam devido ao custo elétrico. No fim das contas, a casa fica até mais gastadora de energia do que era antes dos painéis – um efeito rebote indireto clássico. O mesmo vale na escala macro: se um país inteiro faz um programa de eficiência energética (por exemplo, exigindo carros e máquinas mais econômicos), a demanda de energia inicialmente cresce menos. Porém, se os preços da energia caem ou as pessoas sentem alívio no bolso, elas podem consumir outros bens e serviços com essa renda extra. Esses outros consumos – viagens de avião, produtos industrializados, eletrônicos – têm sua própria “pegada” energética e de carbono. O resultado global pode ser que as emissões totais do país não caiam tanto quanto projetado, ou até voltem a subir após um tempo.
Um ponto crucial aqui é a diferença entre eficiência e suficiência. Eficiência energética é melhorar processos para usar menos energia por unidade de serviço (por exemplo, um carro que faz 15 km/L em vez de 10 km/L). Já a suficiência energética diz respeito a reduzir a demanda total, repensando hábitos e eliminando excessos. É não apenas fazer mais com menos, mas também se contentar em fazer menos onde o “mais” não traz ganho real de bem-estar. Parece simples, mas na prática é bem desafiador. Nosso modelo econômico e cultural estimula constantemente o aumento do consumo – queremos casas maiores, mais aparelhos, mais conforto térmico, mais deslocamentos. A eficiência acaba servindo a esse apetite: como cada unidade sai mais barata, dá para multiplicar o uso e ainda pagar a mesma conta (ou até menos). A suficiência propõe o contrário: qual é o nível de consumo energético que realmente satisfaz nossas necessidades, sem desperdício? – e tentar manter ou até reduzir o consumo a esse patamar adequado.
Um exemplo claro: veículos particulares. Carros modernos consomem bem menos combustível e poluem bem menos que os de 30 anos atrás. Isso é ótimo tecnologicamente. Porém, muitas cidades não viram suas emissões caírem na mesma proporção, porque o número de carros e a distância percorrida aumentaram. Ao invés de usar a eficiência para “fazer o mesmo trajeto gastando menos gasolina e ponto final”, a tendência foi dirigir mais quilômetros, morar mais longe (já que ficou mais viável), e assim por diante. A suficiência, nesse caso, seria perguntar: precisamos mesmo de tantos carros nas ruas? Não deveríamos focar em transportes alternativos, em diminuir a dependência do automóvel, planejar cidades mais compactas? Sem essa mudança de comportamento e estrutura, a eficiência sozinha vira paliativo.
Então, economizar energia é fundamental, mas não é bala de prata. Pensar que apenas trocar todas as tecnologias por versões eficientes vai “salvar o mundo” é um erro perigoso, porque nos dá uma falsa sensação de missão cumprida. Achamos que estamos fazendo muito – afinal, “olha quantos kWh economizei com LED!” – enquanto continuamos, ao nível sistêmico, emitindo carbono e exaurindo recursos quase no mesmo ritmo de antes. Pior: quando confiamos cegamente na eficiência, podemos até consumir mais achando que “não pesa tanto”. É o clássico efeito psicológico de compensação: “Comprei um carro híbrido, então posso viajar mais de carro tranquilo porque ele gasta pouquinho”. Só que, do ponto de vista ambiental, talvez fosse melhor ter mantido as viagens como antes e economizado aqueles litros de combustível de fato. Eficiência sem consciência pode virar desculpa para extravagância.
Eficiência não é solução mágica
Diante de tudo isso, fica claro: apostar apenas na eficiência tecnológica é insuficiente para resolver nossos problemas ambientais. Isso não quer dizer que eficiência seja ruim – longe disso! Sem os enormes ganhos de eficiência das últimas décadas, nossas emissões e consumos seriam muito maiores do que são. A própria Agência Internacional de Energia (IEA) ressalta que esforços de eficiência já evitaram um crescimento exponencial das emissões e ajudam a desacoplar parte do crescimento econômico do uso de energia. Entretanto, a IEA também alerta que a eficiência por si só não basta para conter o consumo total, especialmente em um mundo de economia em expansão . Se a economia global continua crescendo rapidamente, mesmo ficando mais eficiente no uso de energia, acabamos consumindo mais energia ao todo e emitindo mais carbono, apenas em uma proporção menor do que sem eficiência. Ou seja, a eficiência mitiga o aumento de consumo, mas não o elimina. Por isso, não dá para tratá-la como uma solução mágica que permitirá crescimento infinito sem impactos – essa promessa simplesmente ignora o efeito rebote e os limites físicos.
O que fazer, então? Para realmente colher os benefícios da eficiência energética sem cair na armadilha do Paradoxo de Jevons, precisamos combinar eficiência com políticas públicas inteligentes e mudanças no comportamento. Em termos de políticas, os especialistas sugerem algumas abordagens. Uma delas é encarecer ou limitar deliberadamente o uso quando ele aumenta demais. Por exemplo, se os carros novos estão muito econômicos e isso está levando a mais congestionamentos e emissões, governos podem implementar pedágios urbanos ou taxar o combustível de forma que o custo por quilômetro rodado não caia tanto . Assim, o incentivo para dirigir sem moderação diminui. Da mesma forma, se aparelhos eficientes estão barateando muito a eletricidade para o consumidor, poderia-se pensar em tarifas dinâmicas ou “taxas verdes” sobre a energia – de modo que parte da economia vire investimento em fontes limpas ou infraestrutura, em vez de simplesmente estimular mais consumo . São medidas impopulares? Talvez. Mas sem algum tipo de freio ou sinal de preço, a tendência natural é gastarmos todo o benefício da eficiência em mais uso (afinal, quem não gosta de usar mais pagando menos?).
Outra frente importante é a regulamentação e o planejamento. Eficiência energética tem que vir acompanhada de padrões de consumo sustentáveis. Por exemplo, construir edifícios com isolamento térmico excelente (eficiência) mas também prever limites de metragem ou ocupação inteligente dos espaços (suficiência), para evitar cenários em que pessoas climatizem mansões vazias com pouquíssimo gasto unitário – e acham isso ok. Cidades podem investir em transporte público eficiente, mas também devem desestimular o excesso de deslocamentos individuais. As políticas públicas precisam levar em conta esse comportamento humano adaptativo: se facilitarmos muito o uso de energia barata, ele vai crescer. Logo, é preciso antecipar o efeito rebote e puxar outras alavancas – seja via educação, seja via lei.
E não menos importante, precisamos de uma mudança cultural em como enxergamos o “progresso”. Por décadas, associamos progresso a consumir mais energia – mais máquinas, mais eletricidade, mais carros. A eficiência veio como uma amiga, dizendo “você pode continuar progredindo, eu dou um jeito de gastar menos por unidade”. Mas agora vemos que continuar simplesmente ampliando o consumo, mesmo que 20% mais eficiente a cada ano, é inviável num planeta finito. Começar a valorizar a suficiência é crucial: qualidade em vez de quantidade. Talvez conforto não signifique climatizar todos os cômodos o tempo todo, e sim melhorar o isolamento da casa e usar ventilação natural quando possível. Talvez mobilidade urbana não seja cada pessoa num carro elétrico eficiente, e sim menos carros no total e mais bicicletas, caminhadas e transporte coletivo. Em suma, eficiência energética é uma ferramenta valiosa – mas sem repensar nossos hábitos de consumo e implementar salvaguardas, seus ganhos podem escorrer pelos dedos.
No fim do dia, o Paradoxo de Jevons nos provoca a refletir: de que adianta um motor supermoderno, se vamos pisar ainda mais fundo no acelerador? A tecnologia nos dá meios de sermos mais sustentáveis, mas cabe a nós usar esses ganhos com sabedoria. Caso contrário, continuaremos nessa corrida da cenoura e do burro – perseguindo economia de energia na teoria, mas gastando cada vez mais na prática.
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Referências
• OCDE (2022). A Promoção da Resiliência Hídrica no Brasil. Nota 2, p. 95. Disponível em: https://doi.org/10.1787/a438b1f0-pt (definição do “efeito rebote”).
• IEA (2018). Efficiency should always be the first answer. Commentary, 20 Nov 2018. Disponível em: https://www.iea.org/commentaries/efficiency-should-always-be-the-first-answer.
• FMI (2022). Climate Policy Options: A Comparison of Economic Performance. Working Paper WP/22/242. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2022/12/02/Climate-Policy-Options-A-Comparison-of-Economic-Performance-525230 (discussão sobre rebound e políticas de clima).
• BBC Future (2020). Why your internet habits are not as clean as you think. BBC Future – artigo de 5 mar. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/future/article/20200305-why-your-internet-habits-are-not-as-clean-as-you-think.
• The Economist (2018). Energy efficiency is good for consumers. And for the planet? Finance & Economics, 25 out. 2018. Disponível em: https://www.economist.com/finance-and-economics/2018/10/25/energy-efficiency-is-good-for-consumers-and-for-the-planet.
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