Quanto mais caro, mais vende?
O curioso caso dos bens de Giffen e de Veblen
Ticiano Cardoso
8/20/202510 min read
À primeira vista, a dinâmica de preços parece simples: se o preço sobe, a procura cai. Essa é a lei da demanda clássica, que afirma que a quantidade procurada de um produto varia inversamente com seu preço . Mas há exceções raras e curiosas a essa regra – casos em que ocorre o oposto: o preço sobe e, ainda assim, as pessoas compram mais. Esses são os famosos casos dos bens de Giffen e dos bens de Veblen. Antes de explorá-los, vale recapitular rapidamente os conceitos básicos sobre os tipos de bens, para alinhar o entendimento de todos.
O básico sobre os tipos de bens
• Bens normais: A procura aumenta conforme a renda do consumidor cresce (ex.: viajar mais ou fazer mais refeições fora conforme se ganha mais). Em outras palavras, possuem elasticidade-renda positiva – demandam mais quando as pessoas têm renda maior .
• Bens inferiores: A procura diminui quando a renda cresce, pois os consumidores tendem a trocá-los por alternativas de melhor qualidade. São tipicamente bens de baixo custo e, muitas vezes, menor prestígio (ex.: marcas genéricas básicas ou opções baratas como macarrão instantâneo). Quando a renda sobe, a demanda por esses bens cai, já que consumidores optam por produtos superiores .
• Bens de luxo (ou superiores): Bens não essenciais, porém altamente desejados, cujo consumo aumenta mais que proporcionalmente com o aumento da renda. Eles têm elasticidade-renda alta (maior que 1) – ou seja, quando as pessoas ficam mais ricas, passam a gastar proporcionalmente muito mais nesses itens (ex.: bolsas de grife, carros esportivos de edição limitada) .
• Bens substitutos: Produtos que podem cumprir a mesma função, de modo que, se o preço de um sobe, a procura pelo outro tende a aumentar. Por exemplo, se o preço do café dispara, muitos consumidores migram para o chá como alternativa . (Em termos econômicos, bens X e Y são substitutos se a demanda por X cresce quando o preço de Y aumenta – isto é, possuem elasticidade cruzada positiva.)
• Bens complementares: Produtos consumidos em conjunto, de forma que, se o preço de um deles sobe muito, a demanda pelo outro tende a cair. Por exemplo, carros e combustível são complementares: se os carros ficam mais caros e menos gente compra carros, a venda de combustível também diminuirá . (Bens complementares têm elasticidade cruzada negativa, já que o aumento do preço de um reduz a demanda do outro.)
Com esses conceitos básicos claros, podemos discutir os dois casos fora da curva.
Bens de Giffen: quando o básico aperta o orçamento
O que são? Bens de Giffen são mercadorias essenciais, de baixo preço unitário (normalmente alimentos básicos), que respondem por uma parcela grande do orçamento de famílias de baixa renda e não possuem substitutos próximos disponíveis . Em outras palavras, é um caso especial de bem inferior – um bem cuja demanda aumenta quando a renda do consumidor cai – que contraria a lei usual da demanda, apresentando uma curva de demanda com inclinação positiva (quanto mais caro, mais se compra dele) . Esse fenômeno recebeu o nome do economista Robert Giffen, que observou esse comportamento em produtos básicos na era Vitoriana (daí o termo “paradoxo de Giffen” na literatura econômica).
O que acontece? Quando o preço de um bem essencial desse tipo sobe, a família consumidora fica, na prática, mais pobre em termos de poder de compra. Para não faltar o básico, esses consumidores acabam cortando itens melhores (mais caros) do orçamento – por exemplo, compram menos carne ou outros alimentos relativamente caros – e passam a comprar ainda mais do item básico barato, apesar de ele ter ficado mais caro . Em suma, o efeito renda (a perda de poder aquisitivo) fala mais alto do que o efeito substituição: dado que não há substitutos acessíveis, a família consome mais do bem essencial barato para suprir suas necessidades calóricas, abrindo mão de produtos superiores. Exemplo: imagine que o preço do arroz (alimento essencial) dispare; uma família de baixa renda pode reagir comprando mais arroz e reduzindo a compra de proteínas ou vegetais, para conseguir se alimentar dentro do orçamento limitado .
Por que isso é raro? Porque três condições extremas precisam ocorrer ao mesmo tempo para sustentar esse comportamento “anômalo”: (1) o bem em questão precisa ser absolutamente essencial (do tipo “não dá para viver sem”); (2) ele deve representar uma fatia muito grande dos gastos do consumidor (peso elevado no orçamento); e (3) não podem existir substitutos próximos viáveis para ele (ou os substitutos existentes são muito mais caros). Sem esse tripé de fatores, volta a valer a regra comum de demanda (preço sobe, procura cai). Por isso, exemplos claros de bens de Giffen são extremamente raros no mundo real – a maioria acontece em condições de pobreza extrema ou choques excepcionais de oferta. Alguns economistas até discutem se bens de Giffen “puros” realmente existem ou são apenas teóricos, dado quão difícil é atender a todas essas condições simultaneamente . Exemplos frequentemente citados incluem episódios históricos de alta no preço de alimentos básicos como arroz, pão ou batata em populações muito pobres, onde observou-se aumento do consumo desses itens básicos apesar da alta de preços (pois itens como carne tornaram-se incompráveis para aquela renda).
Bens de Veblen: quando o caro vira convite
O que são? Bens de Veblen são o oposto no espectro: itens de alto luxo cujo preço elevado é parte do apelo. São produtos de prestígio, exclusivos, voltados para consumidores de alta renda que buscam sinalizar status (por exemplo, joias de grife, relógios de edição limitada, bolsas de marca raras, obras de arte únicas). Nesses bens, a demanda aumenta conforme o preço sobe, justamente por causa da aura de exclusividade e do valor de status que o preço alto transmite . Em outras palavras, eles deliberadamente fogem à lógica comum de preço, atraindo mais interesse quanto mais caros ficam – um comportamento conhecido como efeito Veblen, em homenagem ao sociólogo-economista Thorstein Veblen, que estudou a “consumo conspícuo” (ostentatório) no final do século XIX.
O que acontece? Para certos consumidores endinheirados e sensíveis a status, um preço maior pode tornar o produto ainda mais desejável, pois sinaliza que ele é exclusivo, raro e inacessível ao público em geral . Assim, se uma marca de luxo eleva substancialmente o preço de um item, esse item pode ganhar prestígio extra e até aumentar suas vendas junto ao público de alto luxo – justamente por se diferenciar ainda mais do comum. Por outro lado, se o preço cair demais, o bem perde seu encanto de exclusividade: pode passar a ser evitado pelos consumidores de status (por ter ficado “popular” ou comum), ao mesmo tempo em que ainda não é acessível para as massas . O resultado? Uma redução da demanda quando o preço baixa, num contrassenso aparente. Em suma, o preço alto é o ponto-chave do apelo nesses produtos. É importante notar que esse fenômeno ocorre em nichos premium específicos – não é qualquer produto caro que se comporta assim, e sim aqueles cuja principal proposta de valor envolve distinção social e escassez percebida. Exemplos claros de bens de Veblen aparecem em mercados de luxo: vinhos raros, obras de arte milionárias, carros superesportivos de série limitada, bolsas de edição exclusiva etc. (Um exemplo ilustrativo: um quadro que, por $100, não atrai interessados, mas se avaliado em $1 milhão passa a despertar muito mais interesse de colecionadores, pela maior percepção de valor e raridade atrelada ao preço .)
O que eles têm em comum? E o que os diferencia?
Em comum: Tanto bens de Giffen quanto bens de Veblen exibem, em determinadas faixas, a demanda aumentando junto com o preço – um verdadeiro “paradoxo” perante a lei da demanda. Em ambos os casos, a curva de demanda pode ter inclinação positiva, significando que a quantidade demandada sobe quando o preço sobe . Essa é a semelhança superficial: são exceções à regra geral de que preços mais altos afastam consumidores.
Diferenças-chave: Apesar do comportamento invertido em comum, as engrenagens por trás de cada caso são opostas:
• Motivação: No caso Giffen, o aumento de consumo decorre de necessidade e restrição de orçamento – é uma escolha forçada pela pobreza e falta de alternativas. Já no caso Veblen, vem de desejo de exclusividade e sinalização de status – é uma escolha aspiracional, de ostentação.
• Tipo de bem: O bem de Giffen é básico/essencial, de baixo valor unitário (ex.: alimento de subsistência); o bem de Veblen é luxo/supérfluo, de altíssimo valor (ex.: artigo de grife ou colecionador). Ou seja, um atende necessidades primárias, o outro desejos de distinção.
• Substitutos: O bem de Giffen tipicamente não tem substitutos próximos viáveis (não dá para trocar por algo similar sem perder calorias ou necessidade essencial) . Já o bem de Veblen até pode ter substitutos funcionais ou equivalentes em uso (há outros relógios que também marcam horas, outros carros que também andam), mas nenhum substituto confere o mesmo prestígio ou satisfação de status do item original. Em suma, no luxo o consumidor poderia comprar outra coisa com funcionalidade similar, mas não quer porque aquele produto específico simboliza exclusividade.
• Contexto e frequência: Bens de Giffen ocorrem em contextos extremos e muito raros – geralmente situações de pobreza severa ou condições de mercado anômalas. São tão raros que alguns especialistas questionam se exemplos “puros” realmente existem amplamente no mundo real . Bens de Veblen, por sua vez, são restritos a nichos de alto luxo, porém não incomuns dentro desses nichos; há diversos exemplos reconhecidos de produtos com efeito Veblen (moda de luxo, alta joalheria, mercados de arte, etc.), e é um fenômeno bem documentado nesses mercados.
Como não confundir Giffen com Veblen?
• Público e apelo: Se o público-alvo do produto é de alta renda e o apelo de compra está na exclusividade, provavelmente você está diante de um caso Veblen. Se o público é de baixa renda, o item é básico e seu gasto pesa muito no orçamento familiar, pode ser um caso Giffen.
• Efeito de promoções/preço: Uma promoção que derruba vendas de um produto premium sugere efeito Veblen (o preço caiu e os consumidores de luxo perderam interesse porque o item “banalizou”). Por outro lado, se o preço de um item básico sobe e, ainda assim, as vendas dele aumentam, desconfie de um possível efeito Giffen (consumidores de baixa renda comprando mais do básico e abrindo mão de opções melhores).
• Métricas para analisar: Acompanhe indicadores como a elasticidade-preço da demanda (isto é, a sensibilidade da quantidade demandada à variação de preço) – se ela ficar positiva em determinado intervalo de preços, há algo especial acontecendo na dinâmica daquele bem. Observe também a elasticidade-renda da demanda: se for negativa, o bem é inferior; se muito alta (>>1), é bem de luxo. E avalie a participação do bem no orçamento do consumidor típico: quanto maior for esse peso, mais provável efeitos de tipo Giffen em caso de alta de preço; já bens de peso pequeno no orçamento dificilmente terão efeito Giffen, mas podem ter comportamento de luxo/Veblen se forem posicionados como símbolos de status.
Por que isso importa (para empresas e para regulações)?
• Gestão de preços no luxo: Para quem vende produtos de alto padrão, entender o efeito Veblen é crucial. Estratégias de desconto e reduções de preço, ao contrário do que ocorre com produtos comuns, podem erosionar o valor percebido da marca. Uma promoção agressiva em artigo de luxo pode matar o encanto de exclusividade e afastar os consumidores abastados que buscam status. Portanto, ao precificar e promover bens de luxo, manter o posicionamento premium e a aura de escassez muitas vezes é fundamental para não destruir a demanda do seu principal público.
• Políticas públicas e inflação de alimentos: Do lado dos reguladores e formuladores de políticas, é importante notar que aumentos de preços em itens essenciais podem ter efeitos sociais delicados e perversos. Em situações de alta de inflação em alimentos básicos, famílias pobres podem reagir consumindo ainda mais do alimento barato e reduzindo itens mais nutritivos, piorando a qualidade da dieta . Ou seja, além do impacto óbvio no custo de vida, existe o risco de um efeito Giffen que agrava problemas nutricionais. Políticas de subsídio ou controle de preços em itens essenciais podem ser consideradas para evitar que uma alta de preços leve justamente aos comportamentos que se deseja combater (como desnutrição ou consumo excessivo de calorias vazias).
• Pesquisa de mercado e estratégia: Para empresas em geral, conhecer bem seu consumidor e o que o preço do produto sinaliza para ele é vital. Produtos posicionados em segmentos distintos exigem abordagens diferentes. Por exemplo, uma marca de luxo deve ter cautela ao baixar preços, pois pode atrair um público que não era o pretendido e, simultaneamente, perder seu público tradicional que buscava exclusividade. Já uma empresa que comercializa um bem essencial para consumidores de baixa renda precisa estar ciente de que aumentos de preço podem não reduzir a demanda como esperado e ainda podem gerar consequências sociais negativas. Em ambos os casos, entender se o seu produto é percebido como inferior, normal, luxo ou até Giffen/Veblen ajuda a evitar erros caros de posicionamento e comunicação.
Conclusão
Bens de Giffen e bens de Veblen têm em comum o resultado aparente (preço sobe e a demanda sobe junto), mas surgem de motivações totalmente diferentes. Um nasce da necessidade sob restrições orçamentárias severas; o outro, do desejo de ostentação e exclusividade. Assim, embora pareçam fenômenos “primos” à primeira vista, as engrenagens por trás de cada um são opostas – e é justamente por isso que saber distingui-los não é apenas curiosidade teórica, mas algo de valor prático. Identificar corretamente se você está lidando com um caso ou outro evita confusões e leva a decisões mais acertadas, seja na hora de precificar um produto, definir estratégias de marketing/comunicação, ou desenhar políticas de mercado e proteção ao consumidor.
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Referências:
• Investopedia – Law of Demand. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/l/lawofdemand.asp
• Investopedia – Normal Good. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/n/normal-good.asp
• Investopedia – Inferior Good. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/i/inferior-good.asp
• Investopedia – Luxury Good. (ver Inferior Good acima, seção Luxury Goods)
• Investopedia – Substitute. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/s/substitute.asp
• Investopedia – Complementary Good. (ver Cross Price Elasticity artigo)
• Investopedia – Giffen Good. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/g/giffengood.asp
• Investopedia – Veblen Good. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/v/veblen-good.asp
• Encyclopaedia Britannica – Giffen paradox. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Giffen-paradox
• Encyclopaedia Britannica – Veblen good. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Veblen-good
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